Desenhando com as palavras
Notas sobre mediação inclusiva
e acessível em Museus
Certa vez perguntei a um vizinho cego
porque é que ouvia sempre
os relatos de futebol pelo Jorge Prestelo.
Ele respondeu que a rádio
era o maior espetáculo do mundo
e com o Jorge sabíamos sempre para que lado ia a bola
e que parte do corpo tocara no esférico, fazendo o golo...
Grande áudio-descrição!
Museum Mediators
Cada Mediador de Museu (Museum Mediator) estabelece uma relação pessoal com as obras mediadas e com o museu que as acolhe. Ao mediar as peças com o público, ele reflete, não só o conhecimento do acervo, mas também uma relação afetiva (latente) com o objeto artístico. Os visitantes do museu e utilizadores habituais da oferta dos serviços educativos sabem bem destingir os diferentes mediadores, numa escolha pessoal que não se pauta apenas pelo conhecimento científico ou técnica de comunicação utilizada. O fator Pessoa pesa bastante nesta profissão, que é um claro cartão de visita dos museus. Não hesito em afirmar que tenho uma relação muito especial com o Museu Gulbenkian, nas suas duas coleções, e que o brio e o afeto fazem parte da minha linguagem de mediador. A mediação em museu é uma atividade eminentemente humana que constrói elos entre os públicos e as coleções, fidelizando visitantes. No trabalho com públicos especiais o afeto e a vontade genuína de querer comunicar com o outro, fazem todo o sentido, funcionando em paralelo com o conhecimento específico ou especializado, deste ofício.
Áudio-descrição
Quando ouvi falar de áudio-descrição em Museus, pensei tratar-se da utilização de áudio-guias, equipamento técnico de apoio aos visitantes, mas não, referia-se a um apoio profissional/técnico a visitas dedicadas a cegos. O mediador habitual do Museu cede a palavra e o espaço a um técnico que faz a áudio-descrição e, terminada a sua função, devolve a palavra ao colega para que fale da peça, da sua história e de outros acontecimentos que tornam a visita realmente interessante. O trabalho de áudio-descrição é parametrizado, organizado numa lógica utilitária, respondendo a objetivos de acessibilidade, mas contrastando com a postura afetiva e comunicativa que o mediador do museu aplica habitualmente no seu discurso. Parece-me que a introdução de mais uma pessoa na tarefa da mediação, torna a comunicação menos escorreita e o resultado final menos interessante.
(Fotografia, por cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian) |
Desenhar com as palavras
Quando em 2005, juntamente com Margarida Vieira, começámos a desbravar os caminhos da acessibilidade e inclusão dentro do Museu (na altura com a designação de CAMJAP), usávamos a expressão desenhar com as palavras para definir o nosso modo de trabalhar com o público portador de cegueira ou baixa visão, o que começava logo no átrio central do museu, continuando pelas galerias, numa viagem preparada e pensada através das obras de arte: Apresentando-nos de forma descritiva e amigável, descrevendo elementos importantes dos serviços do museu e sua localização, usando a voz projetada para que o visitante sentisse a escala, o tamanho, do edifício, fazendo o percurso como se de uma navegação se tratasse, virando para as 3.00h ou apontando às 12.00h (o relógio como referência), ou ainda, usando os pontos cardeais, comparando a nossa estatura com a altura de uma determinada escultura (permitindo dar a escala da obra e informação pessoal sobre o mediador), usando analogias com base no mundo real dos cegos para que a perceção dos conteúdos fosse efetiva, falando e experimentando as temperatura das peças (recorrendo a uma preciosa caixa de temperaturas com diferentes materiais existente no serviço educativo), usando o olfato (como no caso da visita do Egito no tempo dos Faraós), o tato para descobrir numa folha o relevo, sentindo os sulcos dos desenhos de José de Lemos, por vezes cantando, usando variados objetos de mediação (não exclusivamente para a cegueira), enfim, cruzando diferentes elementos e linguagens para potenciar a comunicação das peças e estabelecer elos com o público especial. Sempre com atenção à necessidade de alterar o discurso consoante estivermos na presença de cegueira congénita ou cegueira adquirida (com memória do visto), pois representam duas perceções do mundo distintas. Depois, também, oficinas de expressão (específicas para a cegueira e baixa visão) que consolidavam os conteúdos vividos no museu, que apenas precisavam da nossa entrega expressiva, com um léxico cuidado e um vocabulário descritivo, para terem sucesso. Este afinco criativo nas visitas, não se destinava apenas para público portador de cegueira, ele acontecia com todos os públicos especiais e situações de exclusão que nos procuravam. Para bem se entender o conceito de desenhar com as palavras, poderemos falar do efeito de travelling cinematográfico mostrando os detalhes de uma sala (por exemplo, com o seu equivalente na literatura do séc XIX. Basta lembrar-nos das descrições do apartamento de Paris em a “A cidade e as serras” de Eça de Queirós). Estas introduções da descrição devem ser naturais, acompanhando as necessidades da visita, acontecendo por escolha livre do mediador de museu, de forma límpida e pouco enfatuada, natural. As visitas ou visita-oficinas são diferentes entre si, têm características próprias, abordando peças diferentes, o que gera naturalmente momentos distintos para a intervenção do desenho com as palavras. Faz sentido apostar na formação dos monitores/mediadores que conhecem bem as coleções e manifestam apetência para este trabalho. Poupam-se recursos e valorizam-se mediadores locais. Embora estas visitas, em que se desenha com as palavras, sejam importantes no ponto de vista das acessibilidades, gosto de visitas inclusivas, com público misto (visitantes sem problemas e visão e cegos); puxam mais por mim, obrigam-me a introduzir um discurso descritivo na fluência da comunicação. Os professores titulares (Ensino Básico) nas escolas de referência para alunos cegos sabem que quando entram meninos cegos ou amblíopes na turma, em vez de este acontecimento ser uma ameaça à aprendizagem da língua portuguesa é antes uma oportunidade de ensinar para a inclusão, propondo um léxico que descreva bem o mundo aos colegas que não conseguem ver. Uma das consequências diretas deste trabalho é o desenvolvimento do vocabulário descritivo, que também nos ensina a observar o mundo. Num mundo inclusivo, futuro, todos saberemos comunicar com as diferenças, sem precisar de especialistas.
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