Dacoli e Dacolá - À laia de inventário



Ilustração a lápis para "Dacoli e Dacolá"
Maria Cabral Pacheco de Miranda

Estava eu a dar voltas à cabeça, à procura duma forma de começar a apresentação deste livro do Miguel quando, aos poucos, uma imagem se começou a formar, cada vez mais nítida, e foi tomando conta de mim:
- Já alguma vez exploraram, com certeza, os bolsos de um rapazito de, digamos, 9 anos: de lá podem sair preciosidades do género: um apito, um canivete rombo, um cromo de um futebolista dificílimo de apanhar, uma pedrinha branca com o curioso formato de um dente aguçado (do LOBO, dir-nos-ia o tal rapazito, com ar convincente…), um boneco de plástico com uma cara verde e monstruosa…
Pois bem, à medida que fui lendo os contos deste livro, fui recolhendo, daqui e dacolá, melhor dizendo, dacoli e dacolá, uma colecção de rastos heteróclitos que, aos poucos foram compondo uma espécie de puzzle, com peças que curiosamente iam encaixando umas nas outras, remetendo-me para um mapa mais vasto, onde me fui orientando como podia.
Vou então tentar inventariar alguns desses “objectos”, tentando partilhá-los convosco:
1 – a nostalgia de um “paraíso” que pode bem ser uma infância, como também um certo lugar, entre montes e rios, onde se viveram muitos momentos felizes.
2 – um coração apaixonado e pronto para “pegar fogo” à simples evocação do ser amado.
3 – uma enorme biblioteca abandonada, onde 2 fantasmas assombrados por todos os livros que não conseguiram ler, esperam ansiosamente que alguém os venha ajudar a tirá-los das prateleiras e a folheá-los, para que eles possam, finalmente, conhecer as histórias neles adormecidas.
4 – um salto no tempo e uma visita a uma ilha onde, há 500 anos, os dragões dizimavam as vacas, constituindo um grave problema para os agricultores que lá viviam.
5 – uma rapariguinha com saudades do pai que morreu, com alguma dificuldade em aceitar na sua casa e na sua vida o novo companheiro da mãe.
6 – rastos da passagem de alguns animais – para além das vacas e dos dragões a que me referi, encontrei também uma gata com os seus gatinhos, uma porca preta e talvez…na bruma, um javali.
7 –Pedregulhos que falam a quem lhes encoste o ouvido e consinta em dar espaço ao silêncio.
Estes são apenas alguns dos marcos do território onde se desenrolam estas pequenas narrativas que vale a pena explorar. Num registo realista a que não faltam referências concretas - nomes das terras, das árvores, dos rios e montes, misturam-se pequenos e grandes nadas que constituem a vida das pessoas “de carne e osso”, com as suas alegrias, as suas tagarelices sem importância, as suas lágrimas. No meio desta realidade quotidiana encontramos frequentemente fronteiras permeáveis e naturalmente transponíveis que dão acesso a um outro lado misterioso e menos explicável, onde subitamente mergulhamos e donde saímos tão simplesmente como entrámos. Nesse outro lado as pedras comunicam com as pessoas, os dragões transformam-se em árvores inofensivas, as raparigas apaixonadas tem de ser rigorosamente vigiadas, porque são potencialmente incendiárias…
O tempo da narrativa não é propriamente o do “era uma vez” dos contos de fadas, mas um lugar onde convergem presente passado e futuro…é por isso que o narrador nos pode informar que Daniel, o menino da cidade que queria também ter “uma terra” de pertença irá, em adulto, conhecer e apaixonar-se pela irmã do João, de Canas de Senhorim. Os problemas de um personagem que viveu no tempo dos Descobrimentos, neste caso trata-se de Gonçalo Velho Cabral às voltas com os dragões, podem estar tão próximos de nós como os de João ou Carminho, com quem poderíamos ter cruzado na semana passada.
As ilustrações vão acompanhando as histórias (ou não estivéssemos nós a lidar com um autor-ilustrador), acrescentando pormenores e fixando determinados nós do fio narrativo, para os focalizar segundo um certo ponto de vista.
De resto, ao longo de todas estas as histórias é dado um especial relevo à fixação, que é como quem diz à Memória (com uma função tão relevante no “ofício da escrita” …). A prática deste ofício leva o autor a recorrer à inventariação de palavras antigas, antigos gestos e tradições, ao desenho das emoções que cristalizaram em afectos, tão intensamente vividos que, de certo modo, podem impedir a continuidade do fluxo natural da vida (por ex, a lembrança do pai de Carminho, a lembrança do namorado de Lídia…).
Mas a memória também pode ser reconstrução e reinvenção, dando origem a actos criativos – veja-se, no último conto, como é que João resolve o problema da falta de lembranças significativas das férias, no momento em que se vê obrigado a fazer uma redacção sobre o tema: numa estratégia que imita a do próprio autor, esse rapaz vai recorrer a vestígios, a objectos aparentemente sem valor – e com um búzio, uma barbatana, umas fotografias tiradas na praia, é capaz de se reapropriar da atmosfera, do ritmo, da liberdade, desses dias do verão passado…
Deixo-vos aqui estes poucos objectos roubados a estas 7 histórias. Lendo-as, talvez cada um seja capaz de construir o seu itinerário no território do Miguel Horta, que fica sempre no lugar “onde lhe mora o coração”.
24 de Janeiro 2009

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