"A cor das histórias" - primeira sessão

Fotograma do filme de Tiago Afonso "Espaço tempo" (Novas memórias do cárcere - Guimarães 2012)

Primeiro dia do projeto “a cor das histórias”, do programa "Leitura sem fronteiras", no estabelecimento prisional do Linhó. Fui muito bem recebido pela equipa do estabelecimento prisional e uma animadora da prisão pede para participar no encontro. Anuí.
Duas bibliotecas, servindo duas alas, cheias de livros distribuídos desordenadamente, onde um mediador paciente encontra um belo conjunto de pérolas prontas a emprestar a leitores curiosos. As bibliotecas têm um faxina dedicado que aos poucos vai aprendendo a “guardar” livros. Sentamo-nos todos á volta de uma grande mesa. Quero saber deles, o que leem e o que não leem, o que deixam transparecer pelo olhar, a suas origens e o que esperam dos dias que passaremos juntos ali naquela sala impessoal, forrada de livros. Muitos têm origem crioula o que torna fácil uma primeira aproximação com um conto sobre “almas penadas” ao redor de um poço na ilha da Boavista e os meus “Kuatu purkinhus”, daí a pouco falava de Manuel Lopes, de quem encontrei dois volumes nas estantes. Um dos participantes reconhece-me da Cova da Moura e quando falo do Moinho da Juventude, baixa os olhos: já foi visitado, em tempos, pelo Jonhson um mediador/visitador muito ativo no bairro. Diferentes leituras ou formas de ler, foi o tema seguinte; acabei por ler um poema de Gedeão em hip-pop. Mas o grupo está instável - tenho dois reclusos com doença mental e nem sempre é fácil de conduzir a sessão na direção ideal. Outro recluso está insatisfeito e sai. Disseram-me os companheiros de destino que ele é sempre assim: está sempre a partir, nunca fica em iniciativa nenhuma mas vai sempre espreitar. Mostro vários livros de imagem promovendo uma pequena competição de perceção e interpretação, para falar de competências leitoras, de uma forma simples, desmontando o processo junto aos participantes. Oiço rir e reparo que se sentam nas cadeiras de forma mais descontraída: o corpo concorda. Pego num provérbio em crioulo, nessa altura já todos falavam só na língua Cabo-verdiana: “Nu ta nederia, ma nu ka ta kebra” . O que quer dizer mais ou menos: “pau que dobra não parte”. Oiço diferentes versões do mesmo provérbio dito com origem em várias ilhas e pela boca de um jovem Fula (Guiné). A troca de ideias segue para a resiliência, para a capacidade de sobrevivência da mente em condição reclusa. Não quero que ninguém me trate por professor e rapidamente trocamos os nomes, estabelecemos um patamar de comunicação. Fico a saber que um jovem acabou de ler “Os capitães da areia” (Jorge Amado). Diz que se identificou com aqueles meninos. Proponho-lhe “A tenda dos milagres” que encontrei lá no meio da confusão. Gosto de crime e ação – diz outro recluso - dou-lhe “O crime no expresso oriente” de Aghata Christie. O jovem falador Fula está muito interessado na filosofia oriental. Fala dos hindus, de Paulo Coelho. Entendo a sua procura e sugiro “Sidarta” de Hermann Hesse. Outro pegou numa banda desenhada erótica (Precisamos de mais BD aqui nas bibliotecas prisionais)
Ofereço um dos meus livros à biblioteca. Rapidamente, um recluso pega no livro e começa a folhear, pedindo para o levar para a cela. Um rapaz pede que o ajude a escrever poemas em crioulo para enviar a uma mulher, outro diz que gostaria que eu lesse “umas coisas que tem andado a escrever”…
Marcámos encontro para a próxima sexta-feira.

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