"Ao abrigo de Beja" (Leitura Furiosa)
Ilustração de Susa Monteiro
Ainda ontem
soprava um noroeste duro que assobiava pelas frinchas do meu casebre. Hoje é
este sol malino de Primavera, mais Verão do que outra coisa. O meu corpo já não
aguenta estas mudanças…cá para mim, foi o Homem que mudou as estações do ano
com as suas loucuras e máquinas. Estou febril, doí-me o corpo. Ontem à noite
acordei alagado em suor com um pesadelo completamente doido. Mas juro que não
bebi…acho que é do que sinto… uma virose, disse-me a doutora …
Sonhei que me aproximava do meu barraco no
meio de uma noite de ventania e ao escancarar a porta de casa, deparei-me com
as ratazanas que por aqui andam habitualmente, numa festa. Tinham virado um
caixote daqueles da fruta, armando casino, ali mesmo ao lado do lugar onde
como; distribuíam cartas num animado jogo de sueca, e bêbadas baralhavam,
partiam e davam entre grandes fumaçadas de charuto, discutindo impertinentes e
guinchando agitadas. O pior de tudo é que tinham ido à minha garrafeira, por
detrás dos tijolos, desluzindo tudo que lá havia para beber. Acordei no meio da
noite. Só os grilos anunciando o Verão me devolveram a calma: Gri!Gri! Gri!Gri!
Às vezes acho
que só os animais me entendem… O meu amigo JC brinca sempre comigo… Diz que eu
sou amigo das osgas, dos cágados e lagostins do poço, que se escondem na lama
quando o sol de Verão castiga Beja. Talvez seja assim…
No meio da
solidão um animalzinho faz muita companhia… Basta lembrar-me do “macaco”… Não!
Não era um saguim, mas sim um rafeirito nascido aqui no Alentejo, muito esperto
que sabia lidar com as ovelhas como ninguém. Sobre estes bichitos, perguntem ao
J M que sabe falar com propriedade. Ele tinha um canito, o “Benfica”, que
conseguia encaminhar 1600 ovelhas pelos campos fora, claro está, com a ajuda
dos assobios de pastor.
Ambos sabemos do
cheiro dos pastos logo pela aurora, assim que o rouxinol se cala. A conversa
das bestas e o badalar dos sons acompanhando pensamentos de que já não me
lembro.
O J T, debaixo
do seu chapéu, hoje está silencioso. Nem alma tem para tocar a gaita…deve ser
da gripe. Mas este companheiro é cá dos meus, sabe o que são bichos, também
conhece os animais. Mas o que ele não sabe, é que as ovelhas do meu rebanho
respondiam ao meu chamado. E sempre com o meu “Benfica” ao lado: trabalhava, comia
e dormia sempre junto de mim… valente animal. O cãozinho dava sempre sinal da
malfadada zorra que pela calada se tentava aproximar dos borreguinhos. Também
eu me lembro desses tempos de seara cheia e cultivo de algodão lá para os lados
de S. Matias. E os moços pequenos de agora que acham que o algodão vem das
ovelhas?…
E estamos para
aqui a falar das criaturas de Deus… A
culpa é do homem que a doutora Teresa e a senhora da biblioteca trouxeram para
aqui, hoje. Parece que é um escritor, que coleciona as histórias das pessoas.
Mas até agora só tem feito perguntas sobre animais e a conversa vai seguindo,
solta. Parece que vai escrever as nossas palavras… Não me importo, nesta casa
sinto-me bem. Será que somos rezes tresmalhadas? Agora fala o JC, dá espeço ao
meu silêncio.
Gosto de ouvir
falar o homem que veio da Biblioteca. Faz perguntas e falo, falo como sempre me
apetece, numa a correnteza de ribeira no inverno. Animal? Um Grand Anois
pacífico, vistoso, bonito.
Lembro-me das
viagens com o meu pai, transportando borregos pelo país fora no seu camião onde
adormecia cansado das estradas. Uma vez, não sei onde, acordei com as vozes de
mulheres cantando e espreitei sobre a janela. Talvez fosse na Idanha, não sei,
mas ali estavam aquelas mulheres de negro a cantar às almas do purgatório no
meio da estrada, talvez numa romaria… Depois voltei a adormecer na cabine com o
meu sono de menino.
Já em casa o
caso era outro…nem sempre dormia bem. As paredes exteriores da casa deixavam
passar todos os ruídos dos vizinhos os sons do dia a dia numa intimidade
devassada. O que mais me custava eram as discussões e o choro das crianças.
M J pega na palavra e leva-nos pela sua ilha
com os romeiros pelas estradas, próximo das festas do Senhor Santo Cristo dos
Milagres. Oiço falar de vulcões que nunca vi e da distribuição do pão e da
carne pelo Povo. A mulher dele não fala, apenas vai fazendo malha com os fios
da escuta e o gato enroscado nos pés. M J vem acompanhado com um Huskie que trouxe
do outro lado do atlântico, talvez de Boston: o animalzinho é manso e
resistente ao frio.
Agora toca-me no
braço e lê a minha tatuagem: “Mama mas não mordas”, lê em voz alta e fala de
marcas, de selos e de memórias. O J M atalha logo, afirmando que o melhor lugar
para guardar memórias é dentro da cabeça. Mas a vida tem momentos e quando
marcamos o corpo é porque não queremos esquecer. Porque é que eu nunca
perguntei ao Travessa quem é a Lena que está gravada na pele do seu braço,
junto a um coração trespassado por uma espada? O escritor adivinha-me os
pensamentos e interroga o Joaquim sobre Lena. Apenas ficamos a saber que era
das Caldas da Rainha. Fugiu bem o J T!... Sobre Rosa, nem uma palavra, ela está
tatuada pelo lado de dentro da pele…
Gosto de conversas animadas, com picardia e
acordadas. Agora é o J R que afirma que foi o único do pelotão da tropa que
serviu que não se tatuou…Não teve necessidade de se marcar para se sentir
pertencente a um grupo. Completa a ideia o senhor J M dizendo que se marca o
gado da mesma espécie com o selo cravado na orelha…
Oiço o J C
concluir: “Quando uma pessoa é marcada por dentro, não se vê. É preciso uma
chave especial para revelar o segredo.” Este parceiro escolheu o furão como
animal favorito: um bicho de personalidade assassina mas domesticável. Tão
diferente do meu Leão pacífico e sereno no seu nobre papel de rei da selva.
Logo se levantam vozes que não concordam comigo…mas o leão dá-me calma. Essa
mesma calma e paciência que necessitei durante tanto tempo para aturar clientes
difíceis lá no hipermercado. É com essa tranquilidade que vou conhecendo estes
companheiros de destino. Gosto de escutar…
Agora entra a
doutora no final desta conversa,
lembrando que amanhã temos excursão a Serpa.
Os escritores
existem mesmo?
Então, amanhã
vamos a Serpa visitar um livro.Utentes do refeitório social da Cáritas Diocesana de Beja
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