Construir a Narração: Inauguração do Convento do Carmo (Torres Novas)
Passo a vida a afinar o olhar,
para poder reconhecer o outro. Sem este exercício é difícil entender uma
comunidade. Vem esta constatação a propósito do meu último trabalho em Torres
Novas, “A Visita”, uma intervenção em mediação cultural que partiu da memória
do Hospital Velho desta cidade para chegar aos Torrejanos de agora. Quem me
desafiou, foi João Aidos, que conheço há
uma boa mão cheia de anos. Sei que há uma coisa que nos une, o gostarmos de
pessoas- ainda temos a capacidade de nos espantar com a expressão de quem
habita os espaços, sejam eles latos urbanos ou pequenos e singulares bairros.
Mais uma vez, este Engenheiro Improvável me lançou o desafio de pesquisar as
histórias dos espaços para que as pudesse devolver à população que os possui,
por legado. Andei em torno da memória do “Hospital Velho” (antigo Convento do
Carmo), conversando com as mães que pariram naquela maternidade, com os filhos
e com os profissionais que lá trabalharam. Neste trabalho de mineração da
memória conheci alguns médicos ímpares. O Dr. José Manuel Bento Sampaio (que
foi aluno do meu Pai na Faculdade de Medicina) veio de Almeirim, numa das
noites que antecederam o evento, partilhou a sua visão do hospital, muito útil para a minha organização
do conhecimento. Deixou ficar o seu livro “Memorial do Hospital Distrital de
Torres Novas e do Serviço de Pediatria”, que li atentamente. A Dr.ª Ermelinda
Júlia encheu-me com o seu afeto, facilitando contactos, acompanhando a
construção da minha narração. E que dizer de um serão à conversa com um médico
único, de elevado perfil intelectual, o Dr. Carlos Nuno? Também ele contactou
com o meu Pai no Hospital de Santa Maria. Deu-me uma visão geral muito límpida da história
do Hospital, sobretudo, o retrato humano, referido amiúde pelas mães que ali
pariram e por outros doentes que ali foram tratados. No meu trabalho de
pesquisa que incluiu residência na cidade, tive a preciosa ajuda do Serviço Educativo
do Teatro Virgínia (daqui envio um abraço para a Cláudia Hortêncio!) que me fez
chegar às mãos documentação histórica da Misericórdia e dos arquivos municipais. A
equipa do Teatro recolheu um conjunto de depoimentos, na primeira pessoa (memórias/histórias),
que foram projetados numa sala do Convento, como parte integrante na minha
intervenção.
A instalação incluía, ainda, uma árvore do claustro, que secara
entretanto, e se transformou no lugar dos Tsurus, onde cada Torrejano nascido
no “Hospital Velho” escreveu o seu nome, o nome de sua mãe, da parteira (quando
sabiam) e do pediatra. No domingo à tarde já a árvore estava cheia de pássaros
de papel. Cada pessoa que chegava com uma recordação acabava sempre por desfiar
a memória, por vezes com bastante emoção. As histórias que recolhi e aquelas
que inventei, tecendo um único conto, foram partilhadas ao longo do fim de
semana, de mão dada com algumas canções onde a figura da Mãe é central.
Aqui fica um excerto do conto
que foi narrado durante o fim de semana.
(...)Irmãs de Leite
Maria Engrácia, a bela e frágil filha do dono da Farmácia, começou a ter as dores por volta do almoço. Às 10 de noite já entrava no Hospital Velho, não pela escadaria, mas sim pela rampa das urgências. Ao mesmo tempo Maria Sofia, uma moça rija da Meia Via, subia a escadaria, parando para soprar a cada lance. Quando chegou lá acima, quase estava parida. As duas mulheres ficaram no mesmo quarto apertado (que nem biombos tinha, à época) de duas camas em que bastava esticar a mão de um leito para o outro para fazer uma amizade, dando a mão à vizinha, nas horas de aflição. Engrácia pariu primeiro e foi reconduzida à sua cama onde tentou que a bebé que lhe puseram sobre o peito pegasse na maminha retirando aquele primeiro leite colostro com que a vida nos dá as boas vindas. Mas nada. Entretanto chega, desempoeirada Sofia, pelo seu próprio pé, senta-se na cama, a enfermeira põe-lhe a filha nos braços e a criaturinha logo começa a chupar raivosamente no mamilo da mãe. Escutou-se um Chup!Chup! sonoro que invadiu todo o quarto. E Engrácia naquele desespero: "Bebe filhinha, bebe!” Despachada Sofia daquela primeira parte da ceia da filha, virou-se para a vizinha e disse: “Ó mulher! Queres que a minha filha abra o caminho do leite para a tua? Com duas chupadelas ficas logo com as mamas desentupidas!” E assim foi. Sofia passou cuidadosamente a filha para os braços da vizinha e sentou-se na cama com a filha de Engrácia nos braços. A filha de Sofia nem estranhou um peito diferente: deu duas sacudidelas no mamilo de Engrácia, ao jeito dos cabritinhos e Chup! Chup! lá ficou o leite a escorrer. Retirou a filha e entregou a outra menina ao peito da vizinha, que logo sorveu esfomeada o peito de sua mãe. E repetiram a operação para o outro peito. Ao longo dos dois dias que estiveram no hospital as meninas saltaram pelas quatro maminhas sem qualquer problema. “Queres que ela agora prove desta?”. Ficou ali selada a leite uma amizade improvável e duradoura. Anos mais tarde (20 anos), deram entrada no Hospital Velho duas jovens mulheres com o mesmo tempo de gestação, entrando em trabalho de parto quase em simultâneo. Exigiram ficar em camas vizinhas e pariram quase ao mesmo tempo. Primeiro a filha de Engrácia e depois a de Sofia. Não tiveram nenhuma dificuldade em amamentar, mas deu-se a mesma dança de bebés entre maminhas. A enfermeira de turno comenta com a Doutora: “Até parecem irmãs, pela forma como se dão…” “Sim! Irmãs de leite!” - retorquiu a médica. (...)
O Dr. Carlos Nuno
muito atento às histórias que iam surgindo
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