"Logo à noite no lago Van" - O texto
Cumprindo a promessa, aqui fica o texto de “Logo à noite no
lago Van”, acompanhado de umas belas fotos do Paulo Costa (Cam/ Fundação
Calouste Gulbenkian) que documentam a apresentação deste trabalho na galeria do
Centro de Arte Moderna, dias 17 e 31 de Maio, em sessões muito concorridas.
Esta performance/narrativa começou por um desafio de Ana
Vasconcelos (CAM/Gulbenkian) que acompanhou a pesquisa e construção do texto.
Depois surgiu o interesse das “Comunidades Arménias” nesta apresentação e em breve
estava a trabalhar com o “Dellalian Trio”: Marina Dellalyan, Levon Mouradian,
Nariné Dellalian e fantástica Anna Mouradian. Ao longo dos ensaios fomos
adaptando a dramaturgia, incorporando elementos propostos pelos músicos Arménios,
escolhendo músicas, burilando palavras e tecendo o espetáculo final. Foi um
trabalho exigente de construção de uma personagem, pintor como eu, que quis espelhar
de uma forma pessoal. Creio que quem conhece a história e o trabalho de Arshile
Gorky consegue identificar bem a s citações expressas no texto. Trabalhámos bem!
Quero agradecer à equipa de produção do Cam pelo apoio dado à performance,
agradecendo a Isabel Carlos a possibilidade deste momento de partilha. Obrigado
à Matilde Correa Mendes que pacientemente documentou em vídeo este
acontecimento, ao Paulo Costa que o fotografou, à Susana Gomes da Silva que
sofreu até ao final a concretização desta ideia e, claro, obrigado Ana por me
meteres nestes desafios. Obrigado aos meus companheiros músicos - foi fantástico terem feito a estreia mundial de "The descent of the dove"de Ivan Moody (obra dedicada ao Dellalian Trio) no decorrer da nossa performance. Obrigado ao público do nosso museu!
Logo à noite no lago Van
Os músicos colocados do lado
esquerdo do narrador. O narrador enverga um velho colete sobre uma camisa
branca (está sem óculos e apresenta, colado no rosto, um bigode parecido ao de
Gorky)
Elementos no espaço da galeria: um
cavalete com folhas de papel para desenhar + grafites e um banco alto, 1
cebola, 7 penas de galinha brancas, banco alto. Piano, estantes para as
partituras.
1. Andantino - A. Khachaturyan
America! America! Everything is possible in America!
2. It ain't necessarily so - G. Gershwin
(O
narrador vai montando o suporte com a folha de papel no cavalete, ajustando a
altura – começa o seu desenho)
Eles lá sabem o que é um
Arménio… não entendem…
Let me introduce my self:
Arshile Gorky, primo de Máximo, Russo…pois claro.
Nascido em Novgorod!
Ahhh… Veio fugido à guerra.
Ahhhh… Passou por Ellis Island…coisa terrível.
Pintor? Oh… very interesting… Modern? Ohhhh…
Nem sequer sabem onde fica a
Arménia! Who cares?...
Até Mougouch, a minha mulher, está
convencida que sou russo.
Afinal a Pintura é uma grande
nação! Willem, o de Kooning,
diz sempre isso a gracejar cada vez que passa pelo ateliê da 36 Union Square
New York…
Na arte, afinal, somos todos migrantes…
É que, no outro dia encontrei um compatriota imigrante
que me disse que à força de estar por aqui, já pensava em American.
E vocês? Em língua
sonham e pensam?
Sim, isso é que é
importante: a língua em que sonhamos….
À noite, quando fecho os
olhos, viajo de novo para os campos de Van, à borda do lago.
A memória, o inconsciente, é o
que de mais precioso tenho em mim.
Uma sensação esquecida
torna-se cor.
O sonho, o impossível de se
tocar na minha pintura, é o que resta da verdade onde nasci… de minha mãe
Nariné
aproxima-se devagar do narrador até ficar ao seu lado
O narrador poisa
suavemente a mão no ombro de Nariné
3. Krunk - Komitas
O narrador fica
parado, estático, fitando o infinito
A minha Mãe! A minha mãe… A
minha maaaãe…
Porque demorei tanto tempo a
fazer o retrato da minha mãe?
Uma ida ao ateliê do
fotógrafo, perto da confusão do mercado de Van, flor na mão, o meu melhor fato…
Como ela estava linda com o
seu trajo antigo, garrido.
-Era da tua avó. Disse-me.
Têm cores vivas, os nossos
tecidos…
Não se mexam! Põe-te direito
miúdo! Flash! Já está!
E ficou pronta a fotografia que enviámos ao
meu pai, que já tinha emigrado para aqui…
Lembro-me, quando era criança,
de brincar nas margens do lado Van.
Vosdanig! Vosdanig! Haviam de
ver aminha irmã aflita da margem do lago – Vosdanig, meu irmão. Não te afogues!
Volta Manuog!
E eu nadava, braçadas largas
nas águas do lago Van…
Sabem? As águas do Van são
salgadas, vindas da montanha, do degelo do grande vulcão…
Aposto que não aguentam tanto
tempo como eu nas águas geladas!
Sabem que na borda do lago há
sempre um gato á espera de comer um Tareg
. o único peixe que existe no lago. Os gatos de Van têm cada olho de sua cor.
Vartavar! Vartavar! E como
era divertida a “festa da água”! Eu e a minha irmã molhando quem passava nas
ruas … (Gargalhada)
Nariné conduz
Anna, suavemente até a uma cadeira, para que ela comece a tocar um tema da
infância no seu violoncelo
4. Cisne - C. Saint
Saens
O narrador está
sentado, cabeça enterrada nas mãos, depois volteia a cabeça
Um dia voltaram os Turcos, a
cavalo, com as suas espingardas a tiracolo, brandindo os sabres… tingindo tudo
de vermelho.
Não! Não me peçam para contar
tudo aquilo que vi!
Não! Não!
A minha família tem este
destino…O meu tio, que era padre, foi cruxificado pelos Curdos nas portas de
madeira da sua velha igreja. A minha tia enlouqueceu e depois foi lá e lançou
fogo à Igreja: Pronto! Acabou-se o passado!
Não há tempo a perder! É
preciso fugir para Yerevan! A minha Mãe, Vartush e eu… 9 dias a caminhar. À
nossa volta tanta gente caminhando, crianças como eu, chorando e muitas ficando
pelo caminho…
Foi quase um milagre ter
chegado aqui com a minha irmã Vartush!
Primeiro a Grécia e depois pelos mares até Ellis
Island
5. Oh Bess, You are My Woman Now - G.
Gershwin
O narrador continua
o seu desenho
Eles não precisam de saber
nada disto!
Nem que fui despedido da
fábrica onde trabalhei, pouco tempo depois de ter chegado aqui…
Apanharam-me a desenhar nas embalagens de
cartão e depois descobriram o meu refúgio de desenho, lá em cima, no telhado da
fábrica.
Também estudei… um aluno
Russo exemplar… poderia ter feito aquela vida…
Mas queria mais…Sabia que só
a pintura me salvaria…
Talvez de mim. Da minha
condição de emigrante ou… de refugiado!
Lembro-me do dia em que
assinei pela primeira vez a minha nova identidade no canto inferior direito de
uma tela, um autorretrato: Arshile Gorky…
So easy…
Sabem que me chamavam de
copião?
Pois é… Os críticos são assim… Não entendem
nada de nada.
Each time i found them in openings, they always came out with the usual jokes…
This week are you Picasso or Miró?
Certa vez Levy, o galerista,
disse-me: “Quando fores realmente Gorky, faço-te uma exposição…”
Hoje, anda de roda de mim
como uma abelha de volta de uma flor…
Mas eu tinha de entender os
mestres…Cézanne, Picasso, Miró… Perceber-lhes a pincelada. Conhecer a obra pelo lado de dentro. Pacientemente, com
método!
Como iria sobreviver na
América se não fosse singular e informado?
O De Kooning sabe a verdade…
Sabe que não estive nas grandes escolas nem passei por Paris… Diz que é mágico
aquilo que sei sobre pintura, que sei mais do que ele…
Há quem diga que sou
intuitivo….
Se calhar é mesmo isso que a
Arte é…intuição e… Trabalho!
Agora chegaram novos amigos,
os surrealistas naufragados pela guerra….
Bebo cada palavra que dizem e
debato vivamente as ideias.
E continuo a trabalhar freneticamente…
Mas quem consegue criar num
ateliê desarrumado? No way!
Os pinceis em linha, chão
limpo, tudo aprumado!
Tudo deverá estar como uma
tela branca, imaculada como a neve do inverno arménio.
O fígado é o pente do galo!
Pequenas cerejeiras
protegidas das lebres!
A água do moinho florido...
A
folha da alcachofra é uma coruja!
6. Sonata para violoncelo solo
(fragmento) - A. Khudoyan
(O narrador vai montando uma cebola com 7
penas espetadas)
Vou falar-vos da cebola
(o narrador mostra
uma cebola com 7 penas espetadas)
Tal e qual o fiz quando me
encomendaram os painéis para o aeroporto de Newark …
Foi na minha infância que
testemunhei, pela primeira vez a operação poética surrealista da elevação do
objeto.
Na Arménia onde nasci, para
assinalar a passagem do tempo ao longo da Quaresma até chegar ao domingo de
Páscoa, o povo da minha região construía um calendário peculiar. Nas antigas
habitações existia um buraco redondo no teto para que os fumos se escoassem.
Debaixo dessa abertura era erguida uma cruz de madeira onde se prendia com um
cordel uma cebola com 7 penas espetadas. A cada domingo, retirava-se uma pena,
testemunhando a passagem do tempo
Estes objetos elevados, penas
e cebola flutuantes, foram uma revelação! Tornaram o comum no incomum.
Uma desordem acidental que se
torna no milagre moderno, retirando o objeto do seu lugar habitual, anunciando
uma nova realidade!
(o narrador termina
a leitura do texto e poisa a cebola próximo do cavalete. Continua a desenhar
ativamente sobre o papel montado)
7. The Descent of the Dove - Ivan Moody
(Estreia mundial. Obra dedicada ao
Dellalian Trio)
(Terminada a música, o narrador levanta-se,
pega na cebola e vai falando…)
It’s so good to be here in Sherman…
Desde que a filha do
almirante, Mogouch minha querida mulher, entrou nos meus dias, tudo está
diferente.
As minhas formas flutuam e
memórias da minha infância regressam…
Já alguma vez encostaram o
nariz ao chão para sentir o cheiro da erva e a cor das plantas? Já abriram a
fruta ao meio para cheirar a sua cor?
Ah! Não me posso esquecer de
fazer o baloiço para as miúdas…
Mogouch! Mogouch!
O André vem almoçar!
Qual André?
O Breton, claro!
O que vais cozinhar?
Ele comerá alcachofras, claro…
8. O meu lenço vermelho
- Komitas
(O narrador recolhe o lenço vermelho que está
pendurado na estante de Levon. Começa a dançar, lembrando as danças Arménias. O
narrador vai retirando as penas da cebola, lançando-as no ar, rodopiando pela
sala, enquanto os músicos tocam)
(Finda a peça,
apenas pronuncia uma frase)
O coração sabe sempre o seu lugar…
Encosta a cebola ao
peito
mais fotos aqui
Texto maravilhoso. Atravessar a vida é isto!
ResponderEliminarMuito obrigado. (Miguel Horta)
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