Mediação narrada

Créditos fotográficos: Ricardo Ferreira.
Créditos fotográficos: Ricardo Ferreira.
Texto/guião para oralidade utilizado na visita narrada ao triptico "Vanitas" de Paula Rego (Centro de Arte Moderna) durante a conferência "Em nome das Artes ou em nome dos públicos?"
A primeira vez que vi um anjo foi em casa da minha avó Felisbela
Um dia entrei na sala das visitas, era assim que chamávamos àquele quarto fronteiro à rua, e dei com a minha avó compondo as asas de um anjo. Era uma menina de cabelo louro aos cachos, mais ou menos da minha idade…É que a minha avó fazia os fatos para as procissões lá da vila.
Assim que chegava o verão, eu e o meu irmão éramos despachados no comboio para sul ao cuidado do revisor. Quando chegávamos à estação, lá estava o meu avô à espera com seu velho Citroen coberto da poeira dos campos. Foi numa dessas viagens que provei cerveja pela primeira vez…foi o ajudante do maquinista que me deu a provar…
Nessa mesma casa da vila vivia o meu avô, homem simples do campo e a tia Aldina.
A minha tia era especial e tinha três amigas especiais, solteiras como ela:
-Maria da Fé, Maria da Esperança e Maria da Caridade.
Quando a minha avó, que gostava de espreitar quem na rua passava, via descendo a rua as três amigas da tia Aldina que a vinham visitar pela tardinha dizia sempre em voz alta para dentro de casa:
Aldina! Vêm aí as 3 virtudes!
A tia Aldina quase não saia de casa a não ser para ir à matriz onde tinha o seu genuflexório personalizado: Aldina Gonçalves, estava gravado numa chapinha cravada sobre o veludo vermelho da cadeira de missa.
Passava a maior parte do tempo no jardim acanhado tomando conta das flores, sobre tudo rosas que colocava num jarro de presmalte antes de as compor numa jarrinha sobre a mesa do quarto.
Cada vez que a visitávamos trazíamos sempre uma prenda das nossas viagens. O meu pai trouxe umas bonecas assustadoras do “dia de los muertos”, numa viagem que fez ao México… e ela apreciou bastante. Guardava as suas preciosas prendas num grande e austero guarda-fatos que dominava toda a mobília do quarto. Estávamos determinantemente proibidos de tocar no armário sob pena das mais terríveis consequências … E lá estavam todas as bonecas, um pequeno busto que ela dizia ser do bêbado da vila, um ratinho das caldas, um relógio sempre fora de horas, um Pinóquio ainda sem nariz comprido, uma daquelas bonecas de fertilidade montadas numa cruzeta que a minha mão lhe trouxera de uma excursão a Monsanto, o seu cavaquinho que ela aprendera a tocar em menina… E muitos mais objetos fascinantes aos olhos de uma criança, guardados ciosamente, cada um na sua caixa mesmo ao lado de uma coleção de vestidos garridos, pesados e caprichados que quase nunca vestíamos.
-Digo quase, pois em certos dias a tia mudava…Ó se mudava!
O meu avô dizia que era do vento Levante que afetava a cabeça das pessoas mais fracas. Mas cá para mim era mas é do Medronho que ela ia roubar à dispensa deixando a minha avó enervada, pois era um ingrediente secreto dos seus doces domingueiros.
Então a tia Aldina mudava radicalmente, vestia um daqueles vestidos garridos a cheirar a naftalina, cantava, cantava enquanto dispunha uma espécie de altar sobre a mesa do quarto com todos os objetos que ia retirando do guarda-fatos.
-“Duerme mi niña duerme que la muerte no te llevará”…
Quando a minha avó batia á porta para saber o que se estava a passar, Aldina corria uma cortina escondendo aquela bizarra exposição e vociferava. “Aqui não entra ninguém!”…e depois continuava a cantarolar. Acabava por adormecer em cima da mesa enquanto murmurava: “o sono é a antecâmara da morte… O sono é a antecâmara da morte…a antecâmara…sono”
Mas o pior desses dias de que tenho memória, foi num verão em que a minha mãe me oferecera uma grande caixa de pastéis secos dizendo: “toma lá para fazeres pintura sólida”… “É que tinta em casa da tia não pode ser… ela não deixa.”
Nesse final de Verão, bem junto ao equinócio, quando o sueste assobiava bruto pelas janelas da casa fazendo bater repetidamente a porta do quintal com um ruido surdo e persistente; a tia Aldina teve um dos seus piores acessos. Foi ao quintal buscar uma uma foice do meu avô e barrou-se no quarto vociferando num desassossego: A serpente não me matou, a morte não me levou!! “A morte que venha!” Essa desgraçada que me venha buscar que eu estou à espera dela!”
Só me lembro da minha mãe ter pegado em mim e no meu irmão e de nos levar para a rua e daí para o nosso velho Taunos 17m branco estacionado no meio do vendaval.
E nunca mais vi a tia Aldina...
“Bendito e louvado, está este conto terminado”

E se a história começasse assim:
Dizem que um jovem artista alojado no número 21 da Avenue d’Iéna, foi surpreendido no seu sono pelo fantasma de um velho colecionador a quem faltava uma “vanitas” no seu acervo…
Ou…
Contam os guardas do Centro de Arte Moderna, que depois da hora do fecho, quando as luzes se apagam, uma misteriosa mulher de vestido amarelo vagueia pela nave deserta…
Ou ainda:
Era uma vez uma pintora que tinha uma modelo chamada Lídia com quem vivia e que aos poucos a transformou nas personagens das suas histórias…

E qual é a vossa história?

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