Desenho na ponta dos dedos

Desenho do Armindo sobre "papel de cebola" - "Cadela"

A propósito do vasto campo da Literacia Tátil
Um recurso que não é novo
mas continua a funcionar

Em 1983 tomei contacto com cegos da ACLB, quando da minha exposição “pinturas de uma viagem a Cabo Verde”, que esteve exposta a poucos quarteirões daquela associação. Ao permitir que algumas pessoas pudessem passar as mãos pelas telas, lendo as texturas e ritmos do meu trabalho, consegui entender um outro ponto de vista sobre o mundo. Mas a grande viragem deu-se em 2012 quando trabalhei no Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro, na EB nº2 (escola de referência para cegos), enquadrado numa iniciativa da Câmara de Sintra. É certo que já utilizava outros recursos imaginados para trabalhar com este grupo específico de pessoas (Centro para a Educação do Cidadão Deficiente/ateliê e na oficina “ideias na ponta dos dedos” – Fundação Calouste Gulbenkian), mas a questão da possibilidade do desenho e suas implicações continuavam a agitar as minhas reflexões. Quis o destino que me cruzasse com a professora Elisa Gaspar que partilhou comigo as suas descobertas. Até que um dia uma cadela entrou na sala de aula e um dos meninos cegos fez um desenho da bichinha sobre uma folha de “papel de cebola”. Um resultado espantoso para uma criança com cegueira à nascença! No caso da cegueira adquirida existe uma memória do objeto, sendo a sua representação muito facilitada; na cegueira congénita o desenho é feito pela experiência tátil direta e complementadas pelas descrições escutadas ou lidas em Braile. 
O “papel de cebola” é uma película plástica texturada, percorrida por uma malha regular apertada, que permite registar sulcos feitos com a ponta de um lápis ou outro riscador. Os desenhos são feitos sobre um dispositivo com base de borracha (pode ser napa) com uma peça que se justapõe sobre a película (em Inglês, Sketchpad – a este propósito é muito interessante conhecer o trabalho do arquiteto Chris Downey). Este dispositivo tem sido usado na educação formal de crianças cegas servindo habitualmente para desenhos de cariz funcional (formas geométricas e grafismos próprios do mundo visual). Existe o preconceito de que como não vêem…não vale a pena propor o desenho criativo. O meu desafio foi criar dinâmicas que permitissem a expressão em desenho construídas a partir deste recurso. Rapidamente se entendeu que era possível fazer jogos de adivinha tátil, seguidos de desenho, abrindo portas para registos imaginativos. Este recurso tem um potencial inclusivo muito forte. Concluí, que no geral, o desenho da figura humana sobre o “papel de cebola” executado por crianças cegas, não apresentava diferenças significativas dos desenhos de outras crianças sobre papel, obedecendo às mesmas características evidenciadas nos estudos de Piaget. Foi preciso explicar isto mesmo, muitas vezes… A partir daí, o “papel de cebola” e outros suportes planos, obedecendo ao mesmo objetivo, têm servido para múltiplas descobertas no campos das artes plásticas aplicadas à cegueira (e também de forma inclusiva). Introduzi esta metodologia nas actividades educativas do Programa Descobrir/Fundação Calouste Gulbenkian dedicado a públicos com necessidades educativas especiais no ano de 2012 e em diversos contextos de formação ao longo dos últimos anos. Recentemente, durante uma formação que dei no encontro "Caminhos de Leitura" (Pombal) conheci um grupo de mediadoras sociais de Coimbra que utiliza esta metodologia nos seus trabalhos, à semelhança da mediadora cultural Joana Maia (Mithos) no projeto “Vem calçar os sapatos do outro”. Como sempre o segredo não está na ferramenta mas sim nas metodologias imaginadas e investigadas…
Imagens da formação de voluntários mediadores da leitura
Mithos - Histórias exemplares - Junho 2017
Afinal os cegos ilustram...
Objetos que contam histórias 

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