"O lugre fantasma" - Narração oral no Museu Marítimo de Ílhavo
O pretexto para aprofundar um pouco mais o texto do conto “O
lugre fantasma” surgiu agora com a celebração do aniversário do Museu Marítimo
de Ílhavo onde tive o prazer de contar umas histórias com alguns disparates e
poemas pelo meio. Apresentei este conto (primeira vez) nas Palavras Andarilhas
(2012) numa brincadeira a que chamámos “Contos à deriva” : Contava eu histórias
aos remos do barco do Hermes Picamilho, colocado propositadamente no lago do
jardim municipal de Beja e recebia passageiros que se amontoavam na margem à
espera de vez.
Agora em Ílhavo a personagem principal adquiriu um nome -
Francisco Sarronca, pescador da Fuzeta que nos leva ao longo da narração, pela
pesca do bacalhau, referindo sempre detalhes e pistas existentes no acervo do
Museu Marítimo de Ílhavo. Procurei, li, registei, escrevi e devolvi ao público
no sábado dia 9 de Agosto no interior de um navio (o “Faina maior”), montado
numa das salas do Museu.
Aqui fica o texto que serviu de base para o momento de
narração oral:
Francisco Sarronca, pescador da Fuzeta. Caçado á má fila pela GNR a cavalo nos sapais da Ria Formosa para ir para a “grande faina” do bacalhau: A paga pelo apoio à greve dos marítimos pescadores no ano de 1937. De novo na Terra Nova, num lugre desconhecido com um capitão que não conhecia. Apenas uma cara familiar: o troteiro (degolador) Sebastião, de ílhavo… Ainda ali andava, o velho…
Francisco Sarronca, pescador da Fuzeta. Caçado á má fila pela GNR a cavalo nos sapais da Ria Formosa para ir para a “grande faina” do bacalhau: A paga pelo apoio à greve dos marítimos pescadores no ano de 1937. De novo na Terra Nova, num lugre desconhecido com um capitão que não conhecia. Apenas uma cara familiar: o troteiro (degolador) Sebastião, de ílhavo… Ainda ali andava, o velho…
Dois anos de castigo como salgador, de cócoras no porão
distribuindo o sal pelos fieis amigos escalados, dispostos às camadas. Foi
neste porão e naquela posição, de gatas, que foi surpreendido pelo início da
guerra, a Grande Guerra, no mesmo dia em que lhe anunciaram que voltaria a
pescar num dóri - linha na mão e fé em Deus!
Como pescar vem inscrito no sangue, não teve dificuldade em
relembrar o ofício com a certeza de amealhar uns cobres no final da campanha.
Esta seria a última: passaria a pescar na Armação de atum do Barril, uma famosa almadrava, que facilmente lhe garantiria o sustento dos seus, ainda por cima, mesmo
ao lado de casa, no Sotavento Algarvio.
Manhã glacial, apesar de ser verão. Baixaram os dóris no
oceano gelado e cada um lá seguiu no seu pequeno barco, isca farta de lula, que
o bacalhau é bem guloso: Benza-o Deus! Ao fim de umas horas o cavername da
pequena embarcação começou a ficar coberto de peixe. Dedos gretados pelo frio e
pela força dos gadídeos, apenas as palmas da mão protegidas pelas népias,
faixas de pano enrolando as manápulas. Mas eis que um terrível nevoeiro cobriu
o mar todo. Nem se conseguia ver o velame do lugre, apenas se escutava uma
sineta que servia para orientação dos marítimos, nestes casos. Remou, remou na
direção do som rasgando o manto branco, mas o som cada vez era mais fraco.
Ficou sozinho naquele mar desconhecido. E se um vapor lhe passasse por cima ou
um iceberg surgisse na sua frente? A noite caiu e ele tiritando de frio
enquanto roía a ração de pão e bacalhau entregue diariamente a cada pescador.
Adormeceu por umas horas. Quando acordou, ainda estava imerso naquele branco
gélido.
“Já na encontro o mê barco…” “A Senhora do Livramento que me
proteja”
Já no auge do desespero vê surgir da poalha branca um vulto
de navio, um outro lugre. E desata a berrar para os marinheiros que vislumbrou
na amurada: “na encontro mê barque! Moçes, ajudem-me a encontrar o mê barque!”.
O grande barco vinha deslizando silenciosamente no mar agora
calmo. Olhos encovados os marítimos desta embarcação aparecida olharam-no
mudos, sem dizer palavra. “Ajudem-me a encontrar o mê barque!”- gritou ainda. Os
marinheiros do lugre levantaram os braços apontando a direção da proa sem dizer
palavra. E o lugre seguiu mudo sobre as águas sem parar para o recolher. Ainda
teve tempo para ler o nome do barco: Maria da Glória.
Mesmo assim, resolveu seguir o rumo indicado pelos
marinheiros: avante, seguindo a esteira. E remou na direção apontada pelos
estranhos marítimos. Ao final da tarde, dissipou-se o nevoeiro e como por magia
avistou o seu lugre mesmo ali à frente. Não conseguia conter a alegria: dava
saltos no barco e chamava pelos companheiros. Os outros camaradas subiram-no a
bordo e descarregaram a preciosa carga, empilhando o dóri desparecido na grande
rima de barcos. Sebastião foi buscar uma garrafa de aguardente destinada a ser
prémio para os que mais bacalhaus trouxessem e bombardeou-o com perguntas.
Chico Sarronca contou a sua aventura, como tinha sido
ajudado por uns estranhos marinheiros de um tal lugre chamado Maria da Glória que
apontaram silenciosos o rumo da salvação. Sebastião e os outros companheiros de
destino mudaram de expressão ficando brancos como a cal:
“Foste ajudado por almas penadas…” “Hoje soubemos pela
rádio, que pela madrugada, um submarino alemão afundou o Maria da Glória.
Morreu toda a companha” - explicou Sebastião.
E o lugre mergulhou num silêncio só interrompido pelo ranger
do madeirame embalado por uma suave ondulação.
Vale a pena visitar este museu que construiu o seu discurso expositivo partindo da pesca do bacalhau mas abraçando toda a tradição marítima da ria de Aveiro. Temos assim um museu transversal onde não falta um aquário encantado cheio de gadus morhua, com uma equipa eficiente, conhecedora e simpática. Ao mesmo tempo que contava histórias decorria uma oficina culinária onde os participantes aprendiam a cozinhar a “Chora de bacalhau”, umas maravilhosas caras deste gadídeo que lançaram um cheirinho tentador pelo museu.
Vale a pena visitar este museu que construiu o seu discurso expositivo partindo da pesca do bacalhau mas abraçando toda a tradição marítima da ria de Aveiro. Temos assim um museu transversal onde não falta um aquário encantado cheio de gadus morhua, com uma equipa eficiente, conhecedora e simpática. Ao mesmo tempo que contava histórias decorria uma oficina culinária onde os participantes aprendiam a cozinhar a “Chora de bacalhau”, umas maravilhosas caras deste gadídeo que lançaram um cheirinho tentador pelo museu.
Gostei de ter entre o meu público, os filhos da terra, alguns
em linha direta com os pescadores da Terra Nova. Tranquilizou-me a sua
aprovação. Percebi pelas suas expressões que tinham apreciado bastante o conto “António da Hora”…
Claro que na primeira fila tinha uma fila de pequeninos marujos
sentados sobre almofadas colocadas no convés do lugre expositivo que não se
perturbaram com as histórias para os crescidos e fartaram-se de rir com os
disparates que fui dizendo, aprendidos em Alvor. Em dia de aniversário a casa
estava bem composta: bastantes visitantes (muitos emigrantes) espalhados pelas
diferentes salas.
Um
sábado bem passado…
Comentários
Enviar um comentário