Discorrendo sobre mediação leitora e museus...
Colecção Berardo (Sintra 2002)
Discorrendo
Não vale a pena tentar separar as águas do conhecimento. O
degelo das calotes já começou e o conhecimento adquire diferentes formas para
circular e contornar o relevo social. Procuram-se palavras para definir o
movimento das ideias. O corpo de conhecimento já não é sólido, mas sim líquido
e flui através dos locais (virtuais ou não) de consumo cultural. Os atores
culturais exercitam, experimentam novas capacidades de expressão artística.
Escutamos palavras que se tornaram chavões, como transdisciplinaridade ou
transversalidade, para definir um certo objeto cultural ou forma de fazer
circular cultura. Surgem novas plataformas e antigas estruturas culturais
adaptam-se aos tempos, sob um pano de fundo pleno de informação digital que
circula seguindo o princípio de vasos comunicantes, ora lentamente ou numa
imediata inundação. Os menos incautos sabem nadar: selecionam informação sem se
deixarem afogar.
As paredes das estruturas culturais adquiriram as
propriedades da membrana citoplasmática: deixam-se contaminar por osmose,
experimentando novos formatos, garantindo a expansão e fidelização de públicos.
Servem estas linhas para olhar a mudança, aqui do ponto
vista de um educador artístico que desenvolve o seu trabalho no interior dos
Museus. O tema que abordarei é a influência da Mediação Leitora no trabalho
desenvolvido pelos serviços educativos dos museus.
Contando o "João sem memória"
na entrada do Museu arqueológico de S. Miguel de Odrinhas (2004)
Os serviços educativos têm vindo a convocar colaboradores
oriundos de áreas aparentemente distintas das caraterísticas dos seus acervos.
Assim, não é estranho encontrar gente da biologia ou da escrita desenvolvendo
atividades em museus de arte. Essa variedade humana acaba por influenciar o
modo como partilhamos as coleções. Surgem propostas em diálogo com os acervos,
propondo pontos de vista novos, enriquecendo a relação pessoal que os
visitantes estabelecem com os museus.
É cada vez mais frequente encontrar propostas de conto,
narração oral, escrita criativa ou comunidades de leitores nos espaços
museológicos. Nas oficinas criativas encontramos propostas que nos aproximam da
palavra em relação com o exposto, sendo, por vezes, visível uma metodologia
usada habitualmente na Mediação leitora. A Mediação Leitora tem incorporado na sua
prática, muito da educação artística (sendo
bons exemplos desse trabalho: Marina Palácio ou Portillo Vesga, apenas citando
alguns sem desprimor dos outros), já o caminho inverso, dentro dos Museus, é
mais raro.
Pessoalmente, tenho-me empenhado em tornar essa relação cada
vez mais visível, não resistindo a dar alguns exemplos.
Um dos museus onde melhor trabalhei a escrita imaginativa
foi no Museu Baleeiro das Lajes do Pico: as pequenas histórias ilustradas nos
dentes de cachalote (Scrimshaw) e uma variedade enorme de objetos contadores de
histórias, levaram as crianças à construção de pequenos textos, de uma forma
muito natural (2006).
Museu Baleeiro das Lajes do Pico
Ou então, a proposta de escrita epistolar no extinto
Museu de Arte Moderna de Sintra (Coleção Berardo) a propósito da obra de ErichKahn (2004).
Mas a pensar em crianças mais novas, que não dominam a
escrita, surgem propostas em torno da competência da palavra, como foi o
caso de “Manifestos Palavristas”, oficina de verão pensada por Joana Andrade,
Miguel Horta, Hugo Barata e Maria Remédio: a palavra desenhada, a palavra
dançada, a palavra dita e finalmente filmada, partindo da exposição “Daqui
parece uma Montanha” (Centro de Arte Moderna - 2014). (mais tarde, num outro post, falarei detalhadamente sobre esta oficina do CAM…).
"Manifestos Palavristas" (CAM)
Encontra-me uma
palavra para esta peça.
As coleções falam connosco, impelem-nos à escrita. Uma ara
romana do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, resgata a memória de
Pantera uma bela escrava negra tornada livre pelo seu senhor, perdido de
amores. “Natacha” (António Soares -CAM) fala-nos de um amor entre esta
bailarina Russa e um diplomata Cubano. Numa exposição temporária (CAM), as
sequências fotográficas de João Tabarra levam-nos a narrativas mais negras,
mergulhadas um caldo de referências cinematográficas. Salette Tavares ou AnaHatherly (entre outros) aproximam a poesia do desenho: Mas… Oh! Um curador
imaginativo acaba de colocar uma moldura contendo um dos poemas ortográficos deAlexandre O’ Neill em diálogo com as duas autoras (Mas o homem não era só
poeta?).
As crianças entendem bem o que é brincar com as palavras,
como nos diz Álvaro Magalhães em “O brincador”.
A escrita é apenas mais uma forma de relacionamento do
público com as coleções; não um exclusivo de curadores e críticos. E cada um
escreve á sua maneira…Usar a escrita como forma de fruir o museu, é uma
apropriação democrática da produção cultural exibida nesses espaços. Quando
alguém escreve sobre aquilo que viu ou sentiu é como se dissesse: Entendi à
minha maneira! É isso que queremos, novas interpretações, novos sentidos que
perdurem e acrescentem futuro às nossas coleções.
Casa das Histórias Paula Rego
A palavra dita vai fazendo o seu caminho dentro dos museus,
quer através de performances ou de situações narrativas. O conto começou por
entrar de forma incipiente, repetindo a fórmula gasta da “hora do conto”, depois ganho corpo com diferentes experiências em narração oral. É interessante
verificar que cada vez mais educadores artísticos utilizam o livro
infanto-juvenil em diálogo com as peças expostas. Mas há mais. António Fontinha
prefere contar sem aparente relação com as obras expostas, deixando a
interpretação e os sentidos a pairarem no ar do confronto entre duas
expressões. Outros contadores escolhem do seu reportório contos que se
relacionem, interajam com o exposto.
Eu gosto do labor do mineiro: primeiro aprendo sobre as
obras, se possível falo com os artistas, escrevo o texto e devolvo tudo ao
público num momento de narração oral (“Eisen” – CAM, 2014). Todas as
experiências são válidas – procuramos novos relacionamentos com as coleções.
Escrevendo as histórias sugeridas pelos Scrimshaw
expostos no Museu baleeiro das Lajes do Pico
Uma última
palavra sobre a importância das bibliotecas nos museus e o papel que estes espaços
de leitura podem desempenhar, em relação íntima com os serviços educativos.
Raro, eu sei. Mas um bibliotecário/a atento propõe leituras e relações com o
exposto, relembrando que também eles são peça fundamental na educação das
futuras gerações. Estas são apenas algumas notas sobre a possibilidade de um
trabalho consistente em Mediação leitora no interior dos museus. Ficou muito
por dizer…
António Fontinha é uma referência por aqui na zona saloia, vi-o contar nas bibliotecas da Encarnação e Ericeira para além das escolas dos filhos (Lagoa). Gostei.
ResponderEliminarAntónio Fontinha, juntamente com Cristina Taquelim e Lalaxu (Horácio Santos) têm influenciado muito a minha forma de Contar. O António é um sábio: ensina-nos a reflectir sobre os objectivos da narração oral. Tem acumulado um vasto conhecimento sobre a tradição oral portuguesa... Efectivamente, é uma referência para muitos narradores.
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