EISEN - o texto
Foto de Maria João Carvalho
"Amei muito uma mulher que dizia que durante o sono partilhava comigo
o que mais precioso tinha: o seu inconsciente"
(em silêncio
explorando e escutando a escultura “durante o sono” com luvas de conservador
calçadas) (No chão está poisado o seu casaco)
A letra F! Uma bela questão…
(depois
cantarolando em jeito operático)
O senhor ferreiro Ferradas
que em Ferragudo vivia
no fogo da sua forja
com ferro tudo fazia
Facas, foices e forquilhas
fateixas e ferraduras
Mas será que fazia esculturas?
Mas um dia que o ferreiro
se ferrou a dormir no chão
entrou pela fresta da porta
uma abelha com ferrão
E sem fazer cerimónias
ferrou uma valete ferrada
na face gorda e rosada
do tal ferreiro Ferradas
Ao ser picado o ferreiro
ficou todo infernizado
e logo fez um letreiro
todo em ferro forjado:
Faço trabalhos em ferro
sou ferreiro de profissão
abelhas ficam lá fora
não preciso de ferrão!
(descalça as luvas
colocando-as no bolso)
Chamo-me José Ferro, operário
metalúrgico, filho de ferreiro, mas todos me conhecem por Eisen…por causa Dele.
É que Ele fala e lê alemão, essa língua precisa e estranha.
Sou encarregado da oficina…oh, desculpem! Do
ateliê metalúrgico, como ele gosta de chamar ao nosso espaço de trabalho…
Fui chamado aqui ao museu
pela diretora.
Parece que as esculturas
expostas manifestam comportamentos estranhos, pouco habituais para obras de
arte.
Dizem, os guardas do museu,
que à noite, quando as luzes da nave central se fecham, escutam estranhos
ruídos e lamentos vindos desta zona da exposição.
Dizem… Que algumas esculturas
se lamentam com saudades do corpo que as habitou, outras serpenteiam e movem-se
em direção à luz.
Outras, até, levitam,
erguem-se no ar e lá ficam presas em locais inacessíveis.
Dona Clara, a senhora da
limpeza, afirma que foi atacada pela aranha verde quando varria o chão. Kredu!
Nhor Déus!
E disse-me logo: Foi o senhor
que ajudou a fazer, agora resolve! Okey?
Eu não vou limpar mais
sozinha aquele canto do museu!
Outro segurança afirma que
escapou no último momento de uma lua negra que o perseguia impiedosa pela
escadaria… Klong! Klong! Klong! Refugiou-se atrás de uma coluna, banhado em
suor. E a lua continuou rolando corredor fora…Klong! Kçong! Klong!
De qualquer forma, estas
peças parecem exercer um poder estranho sobre quem com elas convive.
Vejam só esta escultura que o
senhor Gaspar faz com o canhoto dos bilhetes que rasga á entrada…
(Vai ao casaco e pega
na escultorinha, mostrando-a ao público)
(enquanto a
escultorinha de papel circula pelo público ele canta e deambula pelo espaço)
Ferro que nasces
no fundo da terra
feres o chão
arado na primavera
Ó Ferro!
Ó Ferro!
Choro meu homem
perdido
lá na batalha
Geboren wird
Tief in der Erde
Shlägst den boden
Pfug im Frühling
O Eisen!
O Eisen!
Bedauer mein Mann
Verloren
Dort in der Schlacht
(recolhe a
escultorinha)
(vira-se para o
público)
Ainda há pouco estava aqui um
grupo de crianças a dançar de mãos dadas, em torno desta peça.
E iam dizendo
disparatadamente:
-Esta parece-me um polvo.
- Uma alforreca! Dizia outra
E a mais pequenina - Um sol
negro…
-Mas porque é que tu não
falas? (virando-se para a escultura) - Estás a
dormir?
Fala, fala… (encostando o ouvido à peça) Para quem a souber
escutar… murmura…
(de novo virado
para o público)
E também respira. Respira como as outras…inspira,
expira, inspira, expira…
Viram? Viram? Mexeu-se! A
escultura mexeu-se (ficando agachado junto a base da
escultura)
(depois
levantando-se e olhando a assistência)
Sim, Doutora Isabel! Vou
resolver o seu problema… Tenho uma familiaridade insuspeita com estas
criaturas… Perdão!... Estas Esculturas…
Disse eu para acalmar a sábia
mulher…
E agora estou aqui convosco e
tenho esta tarefa para fazer…
Também eu me arrepio, à noite,
quando fecho as luzes do ateliê…tenho a impressão de que aquelas peças estão
vivas. Não param de olhar para mim.
Mostram um interesse especial
pelo meu corpo.
Depois saio, para o meio da
bruma que vem do mar, subindo a serra, envolvendo a mata.
Outras estão lá na sombra
noturna das árvores como espectros vigilantes.
Às vezes fico observá-lo lá
no ateliê…
Muito direto, de maçarico
flamejante na mão, trabalhando o ferro.
Depois para, interrompe a
chama, tira os óculos de soldadura e fica a mirar a peça, absorto, em silêncio…uma
porção de minutos.
Só se ouve o zumbido de um néon teimoso e
intermitente…Deve estar avariado…
No dia seguinte lá está Ele,
muito cedo, lá no ateliê. Arranjou a lâmpada, já não zune.
Está muito direito sentado à
bancada a ler, por certo em alemão.
Ao lado, um conjunto de
desenhos com um traço muito fino e sumido.
Alguns
com estranhas mulheres nuas…
São os estudos para uma nova peça…
Sorri. Poucas palavras e
começamos a trabalhar como se fossemos canteiros de volta de uma escultura
tumular gótica.
Só que não se escuta o truca! Truca, Truca! Mas
sim o silvo do fogo, o raspar agreste da rebarbadora percorrendo a superfície
metálica… e Klong!Klong!Klong!
Pergunto-me: será que o ferro
é a matéria da alma?
Usamos o zircão de ferro dos
meteoritos para datar o nosso planeta, mas como se esculpe a alma que o habita
em todas as suas contradições?
Leve – pesado, luz-escuridão,
morte-vida. Será que conseguimos imortalizar aquele breve momento de transição
entre um estado e outro? A orla o limbo ou o hiato?... já não tenho palavras
para explicar…
Amei muito uma mulher que
dizia que durante o sono partilhava comigo o que de mais precioso tinha: o
inconsciente.
Pela manhã, acordava sempre
com a mão dela poisada ao meu coração.
Talvez estas peças sejam
ferramentas para entender a alma humana em profundidade…
Viram aquela ave que
atravessa a parede como um pensamento livre, alado? Sim! Aquela lá na entrada
do museu.
Lembra-me outro pássaro da
minha infância.
Certo dia voltava eu da
escola, quando uma gralha, negra como a noite, me saltou à frente, justamente
no carreiro entre as estevas que levava a minha casa. A bicha saltitava na
minha frente, até parecia que queria falar comigo. Baixei-me e agarrei uma
pedra que arremessei direto ao alado animal. Mas não acertei. A gralha levantou
voo, deu duas voltas e no ar e voltou a poisar ali, de novo à minha frente. E a
ave negra continuou a saltitar ali na minha frente como que a gozar comigo. Discretamente
procurei um outro seixo, senti-lhe o peso. Peguei na pedra e lesto atirei-a
certeira! Zás! Acertei-lhe! O animal ficou a esvoaçar na poeira do carreiro…tem
uma asa partida – pensei. Peguei nela e coloquei-a na minha lancheira de vime,
onde se ficou a debater.
Nessa noite deitei-me cedo e
levei a lancheira de vime com o bicho para o meu quarto. Mas a meio da noite comecei a
ficar com febre, muitos arrepios. Estou doente – Pensei - É uma bruxa… Ave
negra é uma bruxa!
Levantei-me cheio de tonturas e peguei na
cesta de vime. Abri a porta do monte silenciosamente, para não acordar os meus
pais, e aproximei-me do barranco fronteiro ao monte. Abri a cestinha de vime e
soltei o negro animal que voou misturando-se na escuridão. Voltei para o meu
quarto e deitei-me descansado, dormindo como um justo.
Mas hoje em dia ainda sonho que o pássaro
negro atravessa as paredes do meu quarto para me vir visitar.
Mas porque é que estou para
aqui em devaneios?
Afinal sou apenas um operário
metalúrgico, sindicalizado.
E estou para aqui a falar de
sonhos…
Eu não quero falar dos meus
sonhos!
Talvez as esculturas estejam
doentes…
Talvez o Museu seja um
hospital para obras de arte…
Abram as janelas, deixem-nas
sair!
Não vêm que o lugar delas é
no meio da floresta?
Entre a luz e a escuridão
natural?
Viram? Viram? Mexeu-se outra
vez! (apontando a base da escultura)
(retirando as luvas
do bolso)
Vamos trabalhar…
E bendito e louvado, está
este conto terminado
Foto de Maria João Carvalho
Fiquei siderada quando acabei de ler e reler este texto. Acho que ando a perder qualidades. Em tempos, sabia escrever o que sentia quando o que lia uma coisa em grande. Neste momento, não sei dizer nada. Sublime!
ResponderEliminarObrigado Isabel.
Eliminar