Algumas notas sobre "Eisen"

Fotografias de Maria João Carvalho
Mas afinal, como nascem as histórias?
Afirmam uns que segredadas por vozes interiores que nos ditam o texto, inscrito automaticamente pela mão obediente…
Falar da construção da performance/conto “Eisen” é uma tarefa que se pode demonstrar longa, dada a tessitura de intertextualidades e de referências pessoais que habitam o texto. Para além de objeto artístico, o conto propunha-se abrir janelas no campo interpretativo e deixar ficar um pouco da atmosfera do trabalho em ferro. Aqui deixo aqui algumas referências (não todas...) sobre o processo…
Habituei-me a conviver com a peça “Durante o sono” de Rui Chafes nas oficinas/visita que venho realizando no Centro de Arte Moderna, sobretudo com público com necessidades educativas especiais. É sempre com espanto e prazer que registo as opiniões de pessoas com doença mental ou observo a desconcertante reação de crianças e jovens autistas. Não há dúvida – as peças falam connosco; questionam-nos, interrogam o nosso corpo deixando um travo permanente de ausência. Há vários anos que a obra deste escultor me vem perturbando e inquietando gerando respostas quase sempre de teor poético, único método fiável para analisar os hiatos da existência.
Uma breve conversa com escultor confirmou a direção a seguir. A partir de certo momento não quis ler mais sobre a obra para não contaminar o texto que aos poucos ia emergindo naturalmente em direção ao momento da escrita, habitualmente compulsivo na fluência.
Tive que vestir a pele de um operário metalúrgico (filho de ferreiro), trabalhador no ateliê metalúrgico do artista, para conseguir fazer um percurso narrativo partilhável com o público. São várias as referências gratas que Rui Chafes faz aos seus colaboradores. Estava encontrada a personagem.
Todo o texto é pontuado por referências discretas às obras de arte expostas na retrospetiva, cabe ao público visitante encontrar essas esculturas como se fosse um participante num jogo de pista. Durante a narração, canto, primeiro a “cantiga do ferreiro”, brincando com a letra F que mudou inevitavelmente o nome do artista por influência da matéria com que trabalha…o ferro. A outra canção, “o elogio do ferro”, inventada em tempo recorde, é uma piscadela de olho às canções de Schubert. Num dos trechos, quando uso a onomatopeia "truca, truca", refiro o "poema da pedra lioz" de Gedeão com intenção de trazer luz e contraste entre o trabalho com o calcário (da escultura das pedras tumulares) e o ferro, matéria deste artista.
A dona Clara e o senhor Gaspar são pessoas reais, colegas do museu; o simpático segurança faz mesmo pequenas esculturas em papel com os canhotos dos bilhetes que corta à entrada das exposições. Ainda há aquela mulher que povoa o meu imaginário trazendo para o conto o inconsciente, alcançado por via do amor.
A pequena história da gralha, na infância de José Ferro (personagem da narrativa), nasceu antes de “Eisen” como parte de um texto maior a que chamei “Graco”. Um dia haverá de se autonomizar ganhando o corpo coerente de um conto… Era inevitável a presença da infância nesta narração, com os seus medos escuros e as alegrias luminosas.
Sinto que esta exposição vai deixar saudades pelas paredes do museu.

A minha primeira experiência com a construção de narrativas a partir das obras expostas, ensaiando uma outra forma de mediar Arte dentro dos Museus, começou com o conto “João sem memória” (in “Dacoli e dacolá” – Grácio Editor), com a intenção de falar do património e das coleções aos jovens visitantes do Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas. Seguiu-se “A invasão dos macacos” a propósito de uma série de animais de Júlio Pomar expostos no então Museu de Arte Moderna de Sintra que à época abrigava a Coleção Berardo. No Museu Grão Vasco, “O rapaz da máquina fotográfica” serviu para introduzir a exposição de José Pessoa, fotografia de diferentes acervos dos museus portugueses. Na Casa das Histórias Paula Rego um dos contos escolhidos foi “Não há fumo sem fogo” (in“Dacoli e dacolá” – Grácio Editor). “Vanitas e a tia Aldina” surge na sequência da conferência “Em nome das artes e dos públicos”, acolhida em 2013 na Fundação Calouste Gulbenkian. Assim, surgiu um texto em torno do tríptico “Vanitas” de Paula Rego (acervo CAM) dando corpo à primeira iniciativa do setor educativo, “Encontros Inesperados”, que ao longo de um fim de semana reuniu um número significativo de visitantes em torno da narração oral. “Eisen” faz agora parte deste percurso de comunicação e partilha dos conteúdos do museu, nesta permanente tarefa de sedução do público que nos visita.

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