Lembrando o meu pai
Hoje, no aniversário do nascimento do meu Pai, lembro-o com um grande texto da Professora Maria José Forjaz de Lacerda. Uma questão de dimensão...
JORGE DA SILVA HORTA
LEMBRANDO O
CENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO
Maria José Forjaz de
Lacerda
Professora Catedrática
Jubilada da Faculdade de Medicina de Lisboa
O centenário do
nascimento de Jorge da Silva Horta cumpriu-se no dia 23 de Dezembro de 2007.
Merecia ter sido
lembrado.
Mas nenhuma das
instituições a que deu o seu saber e o seu prestígio durante o século XX (em
especial a Faculdade de Medicina de Lisboa e o Instituto de Anatomia
Patológica, instituições que serviu durante quase meio século) se lembraram de
o homenagear naquela data; como ele próprio diria (desculpando, talvez, tudo e
todos) “em holocausto a outras
necessidades da Faculdade”1.
Desempenhou altos
cargos, entre os quais se destacam os de Professor da Faculdade de Medicina de
Lisboa, Director do Serviço e do Instituto de Anatomia Patológica, Director da
Faculdade de Medicina de Lisboa, Bastonário da Ordem dos Médicos, Presidente da
Sociedade de Ciências Médicas, Membro da Academia das Ciências, Presidente e
Fundador da Sociedade Portuguesa de Anatomia Patológica e Director Interino do
Instituto de Medicina Legal. A todos se dedicou sempre com o mesmo entusiasmo e
o mesmo sentido de serviço à Medicina e à Universidade.
Fui uma das suas
últimas assistentes na disciplina de Anatomia Patológica. Ao relembrá-lo agora,
penso traduzir a vontade de muitos dos que foram seus alunos e colaboradores e
que recordam, não só o Mestre que os ensinou, mas também “o Homem Público que, em todas as actividades que exerceu, se dignificou
a si próprio e as Instituições que serviu”2.
Ele era o Mestre. Ele
era o Professor dialogante. Ele era o Amigo. Era assim que o víamos. Dotado de
uma notável inteligência, de um extraordinário gosto pelo ensino e de uma
cultura invulgar, foi um patologista e um académico brilhante, respeitado pelos
seus pares, pelos seus alunos e pelos seus colaboradores.
Mas não era um Homem fácil nem consensual. É
ele próprio que o diz3:
“Sou um homem vulgar, com bastantes defeitos, apesar de alguns não
transparecerem – e também – porque não dizê-lo? com um certo número de
qualidades.
Esforcei-me sempre, todavia, por ultrapassar a mediania;
por isso fui um lutador e, como tal, ambicioso, mas sem nunca ter atropelado
alguém. A luta deu-me uma certa dureza e, por esta razão, fui considerado por
muitos como “um homem difícil”. Foram bem conhecidas as minhas “iras”, mas elas
sempre se desfizeram depressa sem deixar qualquer marca. Se de alguma coisa que
me diga respeito tenho de me orgulhar – foi o facto de nunca ter albergado
sentimentos de ódio”.
E, mais adiante, continua: “Fui sempre um homem que amou a liberdade.
Cada um tem em si o centro do seu mundo – pode dispor livremente de si próprio
com a salvaguarda de não atingir a liberdade dos outros.”
Aqueles que, como eu,
trabalharam e conviveram com ele sabem bem que esta era a sua maneira de ser.
Teve a seu favor o
tempo em que viveu e as “circunstâncias” que o rodearam, o que não retira qualquer mérito à carreira rápida e
brilhante que prosseguiu, tanto a nível académico como assistencial. Para isso contribuíram dois factos: A vinda de
Friedrich Wolwhill para Portugal e o “vazio” que havia na disciplina de
Anatomia Patológica. Jorge Horta refere-se a estes factos, dizendo3:
“Devo confessar
que na minha ascensão fui largamente bafejado pela sorte, pois aos 32 anos de
idade tinha abertos na minha frente os lugares de professor extraordinário e
catedrático e praticamente não tinha opositores. Mais ainda: tinha o privilégio
de ser o único discípulo de Wohlwill em Portugal”.
Na verdade, revendo a
carreira de Jorge Horta é fácil constatar que assim foi: licenciou-se em 1932
e, em 1934 Wohlwill, prestigiado patologista alemão de origem judaica, chegava
a Portugal, constituindo para nós o elo de ligação da Escola Alemã de Virchow,
(através de Conheim e Fraenkel, de quem foi discípulo) e a nova geração de
patologistas que iria despontar pela mão de Jorge da Silva Horta. Vale a pena
recordar estas suas palavras4 quando nos fala de Wohlwill e deste
período da sua vida, que foi também um período importante da medicina
portuguesa:
“Ele ensinou-nos a anatomia patológica desde os seus
quadros mais simples, as técnicas de autópsia e de coloração histológica – e
transmitiu-nos um método. Fez-nos compreender como se deve respeitar a verdade
científica, como devemos dizer «parece-me» e, finalmente «não sei».
E, mais adiante,
continua:
“Wohlwill aproximou-nos muito dos clínicos. A atitude
anátomo-clínica foi da maior vantagem para nós, para os clínicos e para os
doentes. Ao nosso laboratório, bem como à sala de autópsias, afluíam homens de
todas as especialidades, de dentro e de fora do hospital.
“Um momento feliz potencializou a actuação de Wohlwill,
resultando assim um impulso vigoroso que, em período tão difícil, originou uma
rápida subida de nível da medicina portuguesa: é que à sua volta em esforço
comum reuniram-se homens como Pulido Valente, Egas Moniz, Reynaldo dos Santos,
Fernando Fonseca e Morais David, entre outros. As sessões dos Sábados, ainda na
memória de todos, constituíram a expressão máxima dessa atitude
anatomo-clinica”.
E foi neste ambiente
de humanismo e de excepcional saber que Jorge Horta fez a sua formação,
tornando-se a partir de meados do século XX um dos patologistas mais
conceituados do País e um académico brilhante.
Dotado de uma viva
inteligência, trabalhou com afinco durante o período em que foi o único
discípulo de Wohlwill (1936-1946), e soube apreender todo o conhecimento que
lhe foi transmitido, pondo-o ao serviço da prática hospitalar e do ensino da
cadeira na Faculdade de Medicina de Lisboa. Como atrás referimos, a sua
carreira foi rápida e brilhante: doutorou-se em 1940; fez concurso para o
título de Professor Agregado em 1943; foi nomeado Professor Extraordinário em
1944, sem prestação de provas por ser concorrente único; em 1948 fez concurso
para Professor Catedrático, em que foi aprovado por unanimidade.
Uma longa e árdua tarefa o esperava agora. Wohlwill
tinha partido e tinha deixado um legado: formar novos patologistas que
perpetuassem a sua escola – a Escola de Anatomia Patológica de Lisboa5.
E foi isso que Jorge Horta conseguiu fazer. A sua capacidade de liderança, as
suas excepcionais qualidades didácticas e o seu gosto pelo ensino fizeram dele
um professor admirado e respeitado por alunos e colegas e um patologista
prestigiado no país e no estrangeiro.
A sua actividade no
campo da Anatomia Patológica esteve sempre ligada à investigação. Ainda como
monitor e posteriormente assistente livre da cadeira iniciou os trabalhos de
investigação para a sua tese de doutoramento (“Hiperparatiroidismo experimental”);
posteriormente, como patologista geral que era, interessou-se por temas
referentes a múltiplas patologias, entre as quais destacamos, entre outras,
patologia óssea, linfóide, ginecológica, endócrina e gastrenterológica, de que
resultaram várias publicações.
Mas há dois temas
que, a partir de meados do século XX, dominaram a sua investigação: Amiloidose
de tipo português e Torotraste. Vale a pena analisar com mais atenção estes
dois temas, pela repercussão que tiveram a nível nacional e internacional.
Foi em 1952 que
Corino de Andrade, prestigiado neurologista do Hospital de Santo António do
Porto, identificou clinicamente, em pescadores da Póvoa do Varzim, uma doença
que viria a ter, ao longo do tempo, várias designações: Amiloidose de tipo português, Doença de Andrade; Paramiloidose; Doença
dos Pézinhos; Amiloidose tipo I (Andrade) e Polineuropatia Amiloidótica
Familiar (PAF).
Jorge Horta fez o diagnóstico
anatomo-patológico da doença mas o seu nome ficaria esquecido, não aparecendo
nunca associado a Corino de Andrade em qualquer publicação. A lesão dos nervos
periféricos era complexa e difícil de interpretar histológicamente. (A
substância amilóide dispõe-se no epinervo, no perinervo e no endonervo,
formando nódulos bem limitados que aumentam progressivamente de tamanho,
destruindo e distorsendo as neurofibrilhas).Jorge Horta era então um
patologista de grande prestígio em todo o país, e Corino de Andrade veio a
Lisboa mostrar-lhe as lâminas, nas quais Horta fez prontamente o diagnóstico de
“amiloidose” Este facto só viria a ser lembrado muito mais tarde por Pereira
Guedes. Vale a pena recordar as suas palavras6:
“………Por tudo isto se entendeu que não deveria o Hospital
Geral de Santo António deixar de prestar
homenagem, através do seu Boletim, ao Mestre, ao Investigador e ao Médico cujo
nome lhe ficou indissoluvelmente ligado a partir da identificação da substância
amilóide – que a ele primeiro coube – na Polineuropatia Amiloidótica Familiar
que Corino de Andrade isolou como entidade nosológica e a cujo estudo ele
próprio dedicou muito da sua acção de investigador”
Dos estudos que
efectuou sobre a natureza e as características histológicas e histoquímicas da
substância amilóide na PAF resultaram várias publicações e conferências em
reuniões científicas no país e no estrangeiro.7,8,9,10
Mas, sem dúvida
nenhuma, a investigação mais importante da sua vida foi a que realizou sobre as
lesões causadas no organismo humano pela injecção do dióxido de tório coloidal
(torotraste). Este produto foi introduzido em 1928 como meio de contraste
radiológico, e amplamente utilizado em todo o mundo, sobretudo nas décadas de
30 e 40 do século passado. Em Portugal foi utilizado especialmente em
angiografia cerebral (Egas Moniz) e arteriografia da aorta e membros( Reynaldo
dos Santos). Deixou de ser utilizado em 1955.
Ouvi muitas vezes
Jorge Horta dizer que “O torotraste tem
muito de «traste» e muito pouco de tório”. Esta frase encerra toda a
verdade acerca desta substância: é uma solução coloidal que apenas contem 25%
de dióxido de tório, mas que uma vez introduzido no organismo, nunca mais é
eliminado e fica retido para sempre nos órgãos do chamado “sistema reticulo-endotelial”,
emitindo radiações, sobretudo radiações α, que, apesar de terem fraco poder de
penetração, vão induzir a médio e longo prazo, lesões, sobretudo no local da
injecção (o chamado «granuloma do torotraste») e nos locais de depósito
definitivo. Aí, as partículas são fagocitadas, ficando cerca de 70% retidas no
fígado, 20% no baço e 10% na medula óssea e gânglios linfáticos.
No início da década
de 60 do século passado, Jorge Horta foi convidado através do Prof. Harold
Stwart - representante de várias instituições médicas americanas com interesse
no estudo dos indivíduos atingidos por acções ionizantes – para formar um grupo
de trabalho destinado a estudar os doentes que, em Portugal, tinham recebido
torotraste para fins de diagnóstico. Foi assim formado o “Portuguese Study Group of Thorium Dioxide’s Side Effects” financiado,
durante 13 anos, pela “Environmental
Control Administration, EUA”. Este grupo fez um trabalho importante, no
qual foram apurados 2432 doentes injectados entre 1930 e 1955. Destes, cerca de
metade foram detectados no rastreio e avaliados nos aspectos clínico,
anatomo-patológico, laboratorial e epidemiológico. Sobre este estudo foram
feitas várias reuniões no país e no estrangeiro e foram publicados vários
trabalhos com marcada repercussão a nível nacional e internacional.11,12,13,14
Mas a acção de Jorge
Horta na Faculdade não ficou limitada à Direcção do “seu” Instituto, à docência
e à investigação.
Em 19 de Setembro de 1955 foi nomeado Director
da Faculdade de Medicina, cargo que, a seu pedido, deixou de exercer em
9 de Fevereiro de 1960.
Não foi fácil este
período. Muitos problemas surgiram, mas Jorge Horta soube enfrentá-los com
coragem e determinação, procurando sempre o apoio do Conselho Escolar para
resolver as dificuldades que tinha que enfrentar.
Surgiu uma nova
reforma do Ensino Médico (Decreto-Lei nº
40360 de 20 de Outubro de 1955) com um plano de estudos diferente, que
alterou a ordem de colocação de algumas das disciplinas do curso e criou novas
cadeiras para as quais foi necessário criar condições logísticas e humanas que
tornasse possível o seu ensino. Tudo isto implicou uma reorganização do curso
que não foi fácil, mas que Jorge Horta tentou sempre resolver com a colaboração
do Conselho Escolar e dos alunos. Lembremo-nos que, neste período, não havia
qualquer órgão de gestão onde os alunos tivessem voz, mas Jorge Horta nunca os
ignorou, procurando sempre ouvi-los e compreender as questões por eles
levantadas.
Mas havia outro
problema que vinha de trás, e que Jorge Horta julgou ser possível resolver. Lembremo-nos
que o Hospital de Santa Maria, inaugurado em Abril de 1953, tinha sido pensado
para ser um Hospital Escolar. No entanto, em 1952, ainda no decurso das obras,
foi publicado um Decreto-lei que integrava todos os Hospitais no então
denominado Ministério do Interior. Desta medida resultou que o Hospital de
Santa Maria ficou a ser tutelado por dois ministérios diferentes - Ministério do
Interior e Ministério da Educação – o que viria a gerar, ao longo dos anos as
ambiguidades e a contestação de todos conhecida.
Jorge Horta, com um
sentimento de perfeito universitário, queria manter a todo o custo o Hospital Escolar,
sob a tutela do Ministério da Educação. Para isso propunha que houvesse uma
escala hierárquica única, sendo a Faculdade a garantir todo o serviço
assistencial. Lutou por isso junto dos ministérios mas não conseguiu
concretizar o seu objectivo15. Reconhecemos hoje que tinha razão mas
a sua visão foi considerada utópica.
Nas funções que
exerceu como Director da Faculdade, Jorge Horta sabia ter autoridade, sem ser
autoritário, como exprime nestas palavras16:“A autoridade terá de ser uma constante para fazer algo de novo que não
seja anárquico – mas autoridade não implica submissão pura e simples. Há que
dialogar!”. E foi com este espírito aberto e franco que Jorge Horta procurou
sempre ouvir os estudantes e satisfazer os seus pedidos, quando justos e razoáveis.
Neste período eu era aluna da Faculdade e lembro-me bem da ligação cooperante
que existia entre o Director e os alunos. Como exemplo, basta lembrar que na
“nova” Faculdade não havia uma “Sala de Alunos”. Encontrávamo-nos e falávamos nas
aulas práticas, nos anfiteatros (que, então nos pareciam enormes) ou nos longos
corredores que percorríamos apressadamente de aula em aula. As palavras de
Xavier Morato15 são elucidativas a este respeito: “A verificação da inexistência de local onde
os alunos pudessem descansar, aguardar a hora das aulas, estudar, reunir-se e –
por que não? – divertir-se, fê-lo instar pela construção desse local, o que
conseguiu. Deve-se-lhe, pois, a chamada “Sala dos Alunos”.
O Conselho Escolar
(único órgão de gestão existente na época, constituído por todos os Professores
Catedráticos) nem sempre o apoiou, sobretudo nas opções que tomou em relação
aos alunos. Havia quem o achasse sincero, mas outros chamaram-lhe «demagogo» ou
«ingénuo»15. Mas Jorge Horta, não só como Director da Faculdade mas
em toda a sua actividade profissional, foi sempre um Homem «ahead of his time». Já nessa altura
pensava que na Faculdade devia haver uma gestão diferente, pensava sobretudo na
criação de «corpos docentes – discentes» com funções específicas. Sem o saber,
estava já a falar num modelo de gestão que só viria a concretizar-se cerca de
20 anos depois…
Pelo seu prestígio,
pelas suas qualidades, pela sua determinação, pela sua capacidade de criar
consensos e até pela sua intolerância perante a inércia e a indiferença de
muitos, «o tempo da sua direcção na
Faculdade correspondeu a uma época áurea da Instituição»15.
Apesar disso, não ficou
satisfeito, como podemos ver nestas palavras que proferiu muitos anos depois, referindo-se,
com uma certa nostalgia, à Direcção da “sua” Faculdade”3:
·
“Sonhei sempre em
ocupar este lugar; foi uma das minhas ambições. Tinha a confiança dos
estudantes e de alguns professores. O sonho seria, entre outras coisas menos
importantes, organizar “corpos docentes-discentes” com funções específicas que
dessem a tão necessária coesão à Faculdade. Mas a maior parte do meu Conselho
não o consentiu. Viam na convivência com os estudantes um perigo – eles que
tinham tão bem vivido até aí separados dos alunos por uma forte barreira de
cimento.
Jorge
Horta foi exonerado, a seu pedido em 9 de Fevereiro de 1960. Ao saber do seu
pedido de demissão, no fim de 1959, os alunos fizeram um documento com cerca de
2000 assinaturas (correspondiam, à data, aproximadamente, ao número de alunos
existentes na Faculdade), pedindo para ele continuar a ser o “seu” Director.
Mas Jorge Horta não quis continuar, talvez desencantado pelo que não conseguiu
(ou não o deixaram) fazer. Podemos ver isso nestas suas palavras3:
No fim
de quatro anos pedi a minha demissão: fiquei triste e bastante amargurado.
Tenho, porém, a consciência de que alguma coisa ficou feita. Pelo menos,
modificou-se um pouco o «espírito velho» e nasceu, apesar de uma certa tibieza
«um novo comportamento»
Mas o seu prestígio
era grande e ultrapassou os muros da Faculdade. Dedicou grande parte da sua
actividade ao estudo dos problemas relacionados com o ensino médico pré e pós
graduado, á Universidade e à reorganização do Serviço de Saúde em Portugal.
Desempenhou, por
isso, cargos de grande relevo, entre os quais destacamos os de Bastonário da
Ordem dos Médicos (1956-62), Presidente da Sociedade das Ciências Médicas
(1969-77), Presidente e fundador da Sociedade Portuguesa de Anatomia Patológica
(1963) e membro da Academia das Ciências, Instituições a que deu todo o seu
saber e experiência
Exerceu o cargo de Bastonário
da Ordem dos Médicos durante dois triénios (1956-1959 e 1959-1962). Um
marco da maior importância durante este período foi a publicação em 1961 do “Relatório das Carreiras Médicas”.
Profundamente
insatisfeito com a prática da Medicina no nosso País disse-o, no discurso de
posse do 2º mandato17:
“Todos nós estamos de acordo num ponto. A medicina que
exercemos está muito aquém da praticada nos países de civilização mais
avançada. Teremos de procurar os meios de possuir quadros técnicos suficientes
em número e em qualidade: em seu redor se habilitarão as futuras gerações de
médicos e isto, tanto no ramo da medicina curativa como da preventiva. Para
tanto é necessária uma organização, estruturada desde a Universidade. Teremos
de possuir meios técnicos que nos garantam junto do doente e do homem são, uma
acção perfeita e eficiente”.
E foi, numa tentativa
de resolver esta situação que, numa reunião da Secção Regional de Lisboa da
Ordem dos Médicos, em Agosto de 1958, surgiu a ideia da constituição de um
grupo de trabalho que elaborasse um relatório que viria a defender a ideia do
“Serviço Nacional de Saúde”. São suas estas palavras17:
“É digno, pois,
dos mais rasgados elogios o esforço dispendido pelas comissões de Lisboa e
Porto encarregadas do «estudo das carreiras médicas». Pela primeira vez os
médicos, colectivamente, no seio do seu organismo representativo, a Ordem,
abandonaram a fácil posição de crítica para propor neste campo soluções
definidas. Sinto-me feliz por ter sido no decorrer do meu mandato que estes
acontecimentos se tenham registado. Arredadas as paixões, postos de lado os
problemas particulares, teremos de confessar que estamos em presença de um
documento notável”.
“Ele mostra-nos uma forma como se poderá modificar a
medicina que exercemos. É preciso pois modificar e modificar profundamente”
Um dos subscritores e
principal relator, Miller Guerra18, lembra este período: “A criação de um sistema nacional de saúde
nasceu das circunstâncias em que se encontravam, por volta de 1958, os médicos
e os doentes sem recursos. A situação era paradoxal: de um lado, estavam os
médicos recém-formados que não tinham ocupação nos hospitais ou na clínica
livre; do outro estavam doentes sem assistência”
E, é precisamente
nesse relatório, divulgado em 1961, que é defendida a ideia da criação de um
Serviço Nacional de Saúde.
Vale a pena recordar
estas palavras de Jorge Horta, acerca da sua actuação como bastonário19:
Pela vida fora também ocupei alguns quadros porque a isso
fui obrigado. Ainda a esse respeito dei tudo o que tinha a dar. Foi pouco?
Talvez, mas fi-lo tendo sempre em vista o sentido útil. Fui Bastonário da
Ordem. Então fui obrigado a lutar pelo que me parecia a «boa causa», mas tenho
de admitir duas coisas: uma – que as minhas qualidades não teriam sido
suficientes – outra, que muitas vezes não fui compreendido. No meu segundo
mandato chamei a mim os jovens médicos. Aqui nasceu o que mais tarde se havia
de chamar «Movimento Médico». Assim se escreveram os três relatórios de
Lisboa, Porto e Coimbra e assim nasceu o tão falado e hoje tão propositadamente
esquecido «Relatório das Carreiras Médicas». O relator foi Miller
Guerra: a honra lhe cabe. Quanto a mim só escrevi umas poucas páginas sobre
Ensino Médico, mas controlei o conjunto”.
Apesar de todo o seu
entusiasmo na criação de um Serviço Nacional de Saúde que fosse digno para
médicos e doentes, não conseguiu concretizar este objectivo, como se torna
evidente nestas suas palavras19:
“O cargo de Bastonário obrigou-me a tensões constantes
com ministros e políticos. Julgo que o Dr. Salazar poucas vezes deve ter ouvido
tantas verdades – e foram elas tão duras – (só o adulavam!) como as que eu e os
restantes membros do Conselho Geral da Ordem lhe dissemos. Por esse tempo houve
até um ministro que em público, no Porto, me chamou «comunista».
Outro cargo que Jorge
da Silva Horta desempenhou foi o de “Presidente da Sociedade das Ciências
Médicas” (Fig.2): Tomou posse como 54º Presidente desta instituição a 3
de Novembro de 1969, cargo que exerceu até 1975. O seu mandato ficará sempre
ligado à inauguração da nova sede na Av. da República. Era um problema que
datava de 1958, devidamente acompanhado por todas as direcções. Como nos diz
Torres Pereira20 (nesta
altura, Secretário-Geral da Sociedade): “As
dificuldades foram sem conta e não é este o momento nem o local para as
historiar. Para a história ficará sim, que sendo Jorge Horta Presidente foi
publicado em 1970 no «Diário do Governo» a legislação conveniente que tornou possível
a transferência e inauguração da nova sede”.
Também, nesta altura, se vivia em Portugal o período revolucionário
pós-25 de Abril, o que trouxe alguma perturbação à vida da Sociedade. Entre
outras coisas foi necessário travar a inauguração solene da nova sede e
cancelar a deslocação a Lisboa do cientista Jean Bernard. Torres Pereira20
salienta a atitude de Jorge Horta, ao mesmo tempo firme e conciliadora, durante este período conturbado da vida
social e política. São suas estas palavras: “
o que quero fundamentalmente salientar é o mérito do Presidente que,
cuidadosamente, com serenidade, bom senso, amor à Sociedade e realismo perante
a vida política, soube, na Direcção da Sociedade, aceitar sugestões duns,
críticas de outros, fazer prevalecer noutros casos o seu melhor ponto de vista,
em suma soube estar à altura da responsabilidade, conduzindo-se como um bom
presidente”.
Outro aspecto que
importa salientar é a actividade de Jorge Horta na criação da Sociedade
Portuguesa de Anatomia Patológica, no ano em que se comemorava o
centenário da criação da cadeira de Anatomia Patológica nas Faculdades de
Medicina de Lisboa, Porto e Coimbra. Foi em Outubro de 1963. Até aí, os encontros
científicos dos patologistas faziam-se raramente nas reuniões da Sociedade
Anatómica Portuguesa. Jorge Horta foi o grande dinamizador da criação da
Sociedade e, foi graças ao seu dinamismo e entusiasmo que a sociedade nasceu.
A primeira Assembleia
Geral teve lugar na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa em 25 de Outubro de
1963 e teve por finalidade votar a eleição dos primeiros corpos gerentes e,
logo no ano seguinte, em 20 e 21 de Março de 1964 teve lugar em Lisboa a 1ª
Reunião científica, no Instituto de Anatomia Patológica, que tem desde sempre
funcionado como sede da Sociedade.
Enquanto Presidente da Sociedade Jorge Horta
foi o grande impulsionador de muitas das actividades que então se foram
realizando: as reuniões realizavam-se regularmente três vezes por ano nos
Institutos de Anatomia Patológica das Faculdades de Medicina de Lisboa, Porto e
Coimbra, o que serviu para que todos se fossem conhecendo melhor e fossem
trocando saberes e experiências. A pouco e pouco foram-se estreitando relações
entre os patologistas portugueses e foi-se consolidando a estrutura de uma
sociedade que, mais tarde viria a estabelecer contactos com Angola, Moçambique,
Espanha e Brasil.
Muito ficou por dizer
nesta breve nota sobre a actividade de Jorge Horta nos diferentes cargos que
ocupou. A todos prestigiou, a todos deu o máximo do seu saber e da sua
competência. Mas nem todos o satisfizeram de igual modo.
Propositadamente
deixámos para o fim aquele a que mais se dedicou durante cerca de 40 anos com
um interesse e uma satisfação invulgares: ser Professor. A sua atitude
perante o ensino e as perspectivas de futuro para o ensino médico estão bem
expressas em muitas das suas publicações21,22,23,24,25,26. Aquela
sua forma de ensinar, aberta e dialogante, marcou várias gerações de
estudantes, que ainda hoje o recordam com saudade e respeito. Em trabalho
anterior já nos referimos longamente a este assunto e seria repetitivo focá-lo
novamente agora27. Deixamos apenas aqui algumas das suas palavras,
que mostram bem o seu extraordinário gosto pela docência:
·
“Ser Professor de
Anatomia Patológica – sim – foi a maior ambição que profissionalmente tive. Foi
sempre com uma doce ansiedade que senti aproximarem-se os últimos dias de
férias. De novo, dentro em breve, teria os meus alunos. Eram 300 ou 400
estudantes aos quais eu dava o que sabia e da melhor forma que era capaz de
fazer. Com eles também aprendi bastante no meu próprio comportamento do acto de
ensinar, resultando uma nova pedagogia que todos os anos tentei fosse cada vez
mais perfeita. Para tanto as minhas aulas teóricas, e um pouco também as aulas
práticas, constituíram um diálogo por vezes constante”.
·
“Quando, colocando-me
no campo meramente profissional, me interrogo: o que fui eu? O que fiz neste
campo? Antes de tudo fui Professor, já porque ensinar foi sempre aquilo que
mais gostei de fazer, já porque nos estudantes, estou certo, ficou alguma coisa
de útil.
·
“Conduzir um barco e
saber que a tripulação está satisfeita com ele. Conduzir sem conduzir, dando
primeiro a oportunidade para criticar e, depois, pedindo até essa critica - a qual se torna completamente indispensável
a quem ensina. Ensaiar novos métodos, deixar trabalhar por si os estudantes mas
em contacto connosco. Ver a nossa biblioteca cheia, ver os estudantes a fazer
nela as suas pesquisas, para uma aprendizagem individual ou de grupo. Nestes
anos que são tão longos nunca tive da parte deles uma razão de queixa”
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Silva
Horta J. A Anatomia Patológica na Escola Médico-Cirúrgica e na Faculdade de
Medicina de Lisboa. A sua evolução como especialidade e o seu ensino. Boletim
da Academia das Ciências de Lisboa, 1963; XXXV: 288-305
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