Sapatinho de Nossa Senhora

A concha favorita de minha mãe era o “sapatinho de Nossa senhora”. “Lapa real”, como os pescadores do laredo a conhecem. Mas para mim era mesmo calçado divino. Em criança ficava a imaginar uma nossa senhora bem pequenina cujo pé caberia naquela pequena concha matizada.
Costumava rezar com os meus irmãos em frente a um pequeno oratório que a minha mãe abria lá no seu quarto, revelando uma Virgem com tons de pérola, frágil e misteriosa. Rezávamos ajoelhados no chão do quarto e as preces eram tristes, numa sequência de orações que continuam a ecoar dentro de mim. Um verso repetido, tocava fundo no meu coração de criança: “Neste vale de lágrimas”, repetido vezes sem conta ao lado dos meus irmãos bem comportados…”Neste vale de lágrimas”.
Lembrei-me sempre deste verso da oração nos dias terríveis: um enorme vale com lágrimas escorrendo dos glaciares, uma montanha que chorava alimentando um lago, que no fundo do vale, refletia a angústia dos dias vividos.
A nossa mãe ficou doente, muito. Uma flor crescendo no interior do seu corpo, naquele espaço exíguo, familiar e morno que me abrigou antes do parto. Um nenúfar como o de Chloe de Boris Vian que medrando a roubou de nós. Um dia, já ela estava muito doente, naquele mesmo quarto, ajudei-a sentar-se na cama. Os braços em volta erguendo: como estava leve. Leve como uma pequena nossa senhora que aos poucos nos deixava caminhando suavemente sobre as águas mansas da maré vazia.

Comentários

  1. Li-te, amei-te e devolvo-te um texto ao mesmo nível.

    "As pessoas crescidas fui-as conhecendo de baixo para cima à medida que a minha idade ia subindo em centímetros, marcados na parede pelo lápis da mãe. Primeiro eram apenas sapatos, por vezes descobertos sob a cama, enormes, sem pé dentro, e logo calçados por mim para caminhar pela casa, erguendo as pernas como um escafandrista, num estrondo imenso de solas. (...) Ao chegar à altura da toalha aprendi a distinguir os adultos uns dos outros pelos remédios entre o guardanapo e o copo: as gotas da avó, os xaropes do avô, as várias cores dos comprimidos das tias, as caixinhas de prata das pastilhas dos primos, o vaporizador da asma do padrinho que ele recebia abrindo as mandíbulas numa ansiedade de cherne. (...) Já capaz pelo meu tamanho de lhes olhar para a cara, o que mais me surpreendia neles era a sua estranha indiferença perante as duas únicas coisas verdadeiramente importantes do mundo: os bichos-da-seda e os guarda-chuvas de chocolate. (...) Nunca percebi quando se deixa de ser pequeno para se passar a ser crescido. Provavelmente quando substituímos os guarda-chuvas de chocolate por bifes tártaros. Provavelmente quando começamos a gostar de tomar duche. Provavelmente quando cessamos de ter medo do escuro. Provavelmente quando nos tornamos tristes."


    António Lobo Antunes in "Livro de Crónicas"

    J.

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  2. Que bonito (e triste), Miguel.

    Beijinho grande.

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  3. Às vezes os textos saiem assim... Este em particular, muito marcado pela dor de uma amiga que perdeu recentemente a Mãe... A Jasmim sabe disso...

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