Na orla do mar

Fotografia de António Ventura
Discorrer. Por vezes o ofício da pintura é obsessivo e demasiado fechado no espaço contido pelas quatro paredes do ateliê. Pensa-se demais… O artista é como um monstro enclausurado, Minotauro deambulando eternamente no labirinto sem dar explicações sobre o seu movimento perpétuo. Largo a trincha e lavo as mãos, movimentos lentos sob o fio de água da torneira libertando-me do ofício que ficou agarrado às mãos.
 Viro-me para a vida! Primeiro para os “meus” num aceno angustiado, talvez pelo remorso do adiamento de uma comunicação que me fará mais inteiro: sou pai, sou amante e sou amigo. Pego no telefone em busca de redenção. “Sim, estou bem. Cá vou. Que estás a fazer? Sentes saudades? Também penso em ti, sempre”. Depois o sinal intermitente de fim de ligação. Então, abro a porta metálica e azul que dá para a rua: os vizinhos e suas conversas pequenas com sabor a meia de leite, os operários que estão a construir a via rápida que são boçais mas dão movimento à vila e o som do mar lá ao longe na praia, chamando-me. Recorro à linha de costa no constante bulir de onda na rebentação para me coincidir, mas esta contemplação apenas me devolve um território lato, familiar. Não quero pensar sobre nada enquanto deixo pegadas impressas na superfície de areia, junto ao arraial da Fonte da Telha. Aí, sou apenas um homem simples que caminha pela orla marítima e descalça os seus ténis, jogando-os em seguida para a areia seca sob o riso sarcástico das gaivotas que também por ali estão ao entardecer. As vagas enviam-me uma espuma fria que molha os pés; arrepio-me mas não fujo. “Olha…já molhei as calças…”. Sorrio e sigo adiante rumo ao sul num conciliábulo ritmado pelos avanços do mar. As marés invadem-me em pensamentos que nunca registo, apenas me deixo ir pela zona entre marés. Há quantos anos faço este percurso?
Uma onda deixou a descoberto um pequeno objecto meio enterrado na densidade da areia… um salvado. Recolho o achado e paro, olhando com os dedos as funções e o tempo daquela peça: Bolso dentro nas calças molhadas! Tem a ver com a Pintura…
Dou meia volta em direcção ao carro que ficou lá muito ao longe, estacionado entre as dunas. “O frio começa a penetrar neste Setembro” – penso. E ajeito a blusa contra os ombros estugando o passo. Já os pescadores começam a faina da Xávega, aproveitando o ameno e a maré vazia: tractor sobre a praia, vociferando ordens enquanto o resto da companha lá fora na barca, inicia a manobra de cerco do peixe. Cabos puxados pelos rotores das máquinas, mistura de vozes, com risos misturados de mulheres. Estaco deleitado pela luz e pelo movimento no meio da noite que cai e espero com a mesma interrogação dos recolectores: “Que peixe virá? Será carapau branco?” E ali fico encandeado pela luz dos projectores, pelo movimento da rede que se aproxima da costa. Então o saco fica à vista e num último impulso é arrastado para seco. Os peixes vêem fervilhando em luz num sacudir incessante, debatendo-se nas malhas. Duas mãos rudes e desenvoltas abrem as costuras da rede que se abre sobre a areia como um leque luminoso revelando a pescaria. Parecem vestidos de prata, os peixes! Imediatamente outras mãos apressadas começam a tarefa de separação da captura colocando em caixas de plástico laranja as diferentes espécies obtidas. “Quer um chicharrinho, professor?” Aceito de bom grado o saco de plástico que me estendem. Depois lá se vão, luminosos, tractor roncando pela praia, transportando a rede rebocada pela areia no côncavo de uma parabólica invertida. Fico ali sorridente, conquistado, em frente ao oceano já escuro, enquanto eles se afastam para norte.. O meu carro está logo ali entre o vulto de duas dunas. No assento, o telemóvel pisca num sem número de chamadas não atendidas. Sigo para casa, para a casa da pintura. Mas nesta noite só desenharei com as palavras.

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