"Só Deus me pode julgar"
“Só Deus me pode
julgar”
(tatuagem nas
costas de um recluso do EPR Guimarães)
Finalmente
publicado o livro “Memórias do cárcere – revisitadas”! Estão todos de parabéns:
quem fez a conceção do projeto, quem financiou, quem acolheu e, sobretudo, quem
escreveu.
Uma sessão bem
concorrida, casa cheia no Café Concerto do Centro Cultural Vila Flor, com a presença
dos reclusos e dos guardas (à paisana) e mesa composta por individualidades,
como manda o figurino. Uma projeção de algumas curtas dos presos, serviram para
relembrar o habitat de escrita do livro que agora se apresenta. Trabalho
cinematográfico de Tiago Afonso, jovem realizador responsável também por um
documentário onde se encontra espelhada a realidade dos dias vividos em torno
da grande mesa da biblioteca prisional, propondo leituras, lendo e escrevendo…escutando
a voz do outro. E que livro! Cartonado, pesado, um belo objeto estético muito
bem concebido por Cristina Lamego com fotografias de Sílvia Martins. Um belo e
digno livro institucional, a encher o olho de quem lhe toma o peso.“E as nossas ilustrações”? Interroga-me um recluso na sessão. Falo-lhe, aos nós por dentro, que a opção foi outra, mas os textos estão todos lá numa publicação de grande qualidade… Trata-se conjunto de desenhos que vale a pena publicar: uns ingénuos, outros oníricos, projetos de tatuagens e um texto do Duarte ilustrado numa folha de papel de carta (um precioso testemunho iconográfico do ambiente prisional).
Agora entendo porque não foi publicado o prefácio que me foi pedido para a obra; era um texto escrito para um outro livro, imaginário e mais humilde: daqueles que se folheiam sem cerimónias. Teria sido bom contextualizar a escrita produzida… Só me dei conta deste facto do qual não fui avisado, quando me propus ler (da plateia) um belo poema de André Sapateiro à assistência ali reunida…gostaram. As palavras (essas) saíram tremidas. Sem rodeios, o recluso Duarte Fafe levantou-se, agradecendo expressivamente a minha presença dentro da cadeia, bem como a do Tiago, encerrando assim a sessão. Foram muitas horas seguidas com eles e com os guardas, a quem envio um abraço especial.
No final, o Professor João Serra era um homem contente e com razão: tinha acolhido na Guimarães 2012 um projeto arrojado de grande potencial transformador. O testemunho foi passado ao coração do Minho, seria bom não perder a energia e intervir nas bibliotecas prisionais a Norte.
Talvez estas linhas deem uma ideia dos dias que foram vividos na
biblioteca do Estabelecimento Prisional de Guimarães; Primavera ligando ao
Verão de palavras.
O livro está aí e é reflexo de uma convivência criativa com 22 reclusos;
fala por si nas múltiplas cambiantes da escrita e das motivações. Será que
conseguem ver as pessoas antes da escrita? Sim, é disso que se trata, das
diferentes personalidades em condição reclusa. É preciso primeiro escutar as
vozes e trabalhar a competência da palavra inata no amago do ser: ouvir as
histórias de vida, entender as lágrimas em silêncio, e propor horizontes primeiro
de escuta com narração oral e pequenas poesias, acessíveis. Depois, é ir mais
longe, comunicando com disponibilidade. Ir entendendo as pessoas que se reúnem
pela manhã em redor da grande mesa que, aos poucos se vão dando a conhecer no
intervalo de uma leitura ou num comentário, depois de terem observado um livro
de imagens que mexeu lá por dentro. Identificar a pessoa leitora, eis o
primeiro passo para se descobrir o leitor bem diferente do outro que se senta
ao seu lado.Leio um capítulo das “Memórias do cárcere”: é evidente a simpatia pela cadelinha Minerva, extensão do seu dono, num retrato humano que julgam reconhecer algures entre eles. Depois poesia, muita, e trechos de prosa, pequenos contos de autores da língua portuguesa. Surgem os primeiros exercícios de escrita a partir de uma técnica a que chamei de “Máquina da poesia”, coisa simples, um quadro de palavras que interagem entre si para criar pequenos poemas visuais ao jeito dos Haiku.
Mais algumas propostas surgem sobre a mesa. Quem quiser que as leve para escrever…
Valorizei as histórias de vida e a cultura popular: O género? Podiam ser todos. Fui propondo de acordo com o perfil de cada um. Entusiasmei aqueles que já eram leitores a vencerem os seus limites na escrita: todos temos uma voz que nos dita linhas no silêncio. Aqueles que tinham maior escolaridade ajudaram os outros nos seus registos, uns biógrafos circunstanciais. Por isso se encontram biografias neste livro, a par de narrativas pelo próprio punho, que vos apresentamos com a escrita própria de quem as produziu.
Em determinado passo do livro encontramos desgarradas minhotas, falando de festas populares e até uma saudação poética a Camilo terminando com um pedido do autor:
“Memórias de cárceres
Foi a minha inspiraçãoAgora quero também ler
O Amor de Perdição”
Alguém tem o livro para oferecer a este leitor conquistado?
Arrepiou-me a história de uma fuga ou uma infância perdida e órfã, mas
sempre nos reencontrámos em redor da grande mesa das palavras, às vezes só para
conversar, com tempo, com toque e com aceitação.“Bertinho dos tambores” diz que não está habituado a ler …nunca ligou à escola. É construtor de caixas, afaga a pele esticada adivinhando-lhe o som. Peço-lhe que ponha no papel o que é que o construtor diz ao tambor e aquilo que o tambor fala quando gera o som para o tocador. Surge um belo texto sincopado, feito a duas vozes com Jorge: Não são onomatopeias, é mesmo conversa de tambor!
Peço a um recluso Brasileiro que traga a tropical infância para o papel, gracejo com outro sobre a sua “Família metralha”, ele ri-se e escreve, não leva a mal, os passos que deu na vida estão dados. Outro ainda quer escrever uma carta a uma “mulher linda”, dou-lhe um caderno e uma caneta da Casa de Camilo, e ele escreve, escreve. Dois reclusos planeiam em conjunto o que vão fazer depois de soltos: querem ir à Madeira com as suas mulheres e sonham papel fora. Ainda estou à espera que o senhor Francisco me escreva num papel, como se apanham e tratam os grilos…mas ele escreve-me fragmentos agitados de uma vivência atribulada em lugares onde nunca fui. O Teixeira Morais, recluso responsável pela biblioteca, insiste sempre: “A maior parte está cá por falta de instrução, paga-se o mau acesso à educação” – concordo. O senhor Ramires, homem de bom coração diz que não escreve em papel, só na cabeça, então canta, canta naquele timbre de vento nómada, batendo o ritmo com as palmas das mãos sobre a mesa onde escrevemos. E escutamos estupefactos a beleza daquele choro ancestral. Tiago Afonso filma, sabendo ser aquele um momento especial destas “Memórias”.
“Tenho uma dor
Dentro do meu coração
Falta-me o meu Amor
Estou chorando de paixão”
Paulo desenfreado, como não queria escrever, ilustrou, serenando. Uma caixa de lápis de cor oferecida invadiu a prisão com cor! E o senhor Francisco também desenhou com o Teixeira, as ilustrações para este livro onde figura igualmente um fac-simile das folhas fortes de Duarte, traçadas e escritas como impressões digitais.
Outras coisas soube… mas essas são memórias minhas. Agora faço a minha mala de mediador da leitura e da escrita para partir para outro lado.
O gradão amarelo fecha-se atrás de mim com um estrondo. Gostaria que aquela biblioteca prisional tivesse um patrono: Camilo Castelo Branco.
Sinto uma mão no meu ombro, é Hélder, o chefe dos guardas; simboliza o apoio que toda a prisão deu ao nosso projeto: sorrimos.
Olho mais uma vez o castelo daquela vista privilegiada e parto.
Fica aqui o livro.
Miguel Horta, Verão 2012
Miguel, adorei o Prefácio (este não-prefácio). Seria uma excelente abertura para esse livro, por muito solene que o tenham tornado. Descritivo e poético, sensível..., despertou em mim grande emoção. Com ou sem os desenhos, com ou sem o toque deste prólogo, o importante é que o trabalho foi feito, a escrita tomou forma, o livro está aí... Parabéns a todos!
ResponderEliminarObrigado! Embora tenha ficado triste, até zangado. O prefácio contextualizava o resultado da escrita...
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