Equinócio


Fotografia de António Ventura
Quase a anunciar o fim das férias grandes (e eram bem grandes nesse tempo…), tínhamos o Equinócio! Habitualmente, a passagem do verão para o outono fazia-se com uma daquelas suestadas que faziam rebentar na praia grandes vagas de água bem quente, deixando um arrepio de receio. Lembro-me como gostava de me deixar ir, afoito, naquelas montanhas de água antes de se despenharem sobre o areal. Claro que os adultos estavam sempre por perto, encorajando vigilantes as proezas dos mais pequenos. Era uma sensação de vitória, vencendo o medo naquelas vagas turvas e mornas do barlavento algarvio. O bodyboard apenas existia na sua versão Repimpa, com a almofada do colchão flutuante devidamente esvaziada para melhor controlo das carreirinhas que nos levavam pela espuma até aos pés dos nossos pais sorridentes.
Mas houve um ano que o levante foi bruto no equinócio, não se limitando só a molhar as toalhas dos banhistas distraídos à sombra dos toldos montados na praia do Vau… Durante a noite, lembro-me do rugir do mar, agigantando-se, roubando o meu sono de menino irrequieto. A manhã trouxe a grande visão: o areal todo varrido pelo mar e a maré vazia pondo a descoberto incalculáveis tesouros! Havia nessa época, lá na praia, uma barraquita de madeira que vendia gelados, pirolitos e sumóis, bem caros para as nossas mesadas dos anos sessenta. Mas o mar na madrugada destruiu a cabanita comercial, entrando pela porta e semeando pelo areal uma imensidão de produtos que nós, miúdos recolectores nos apressamos a consumir; bastou encontrar um abre cápsulas… E foi um fartote. Lá pelas nove horas da manhã, íamos desenterrando sumos,  Spur Colas, as bojudas laranjinhas C, águas tónicas e pirolitos. Deu até para fazer uma pequena reserva submersa numa poça secreta da maré vazia que apenas os mais novos conheciam. Um dos meus primos apareceu muito excitado com a cara meio corada: acho que foi a primeira vez que provou uma mini… A minha tia Adelina, que tomava conta de nós (irmãos) enquanto os meus pais trabalhavam lá no hospital em Lisboa, ficou espantada de toda a moçada estar mal da barriga um dia depois do vendaval… Tal foi a barrigada de refrigerantes. Nos bolsos dos meus calções uma bela coleção de bonecos de plástico colorido, brinde dos gelados à época e um conjunto de berlindes cebola (vinham nos pirulitos).
Outra grande vantagem daquele equinócio, foi que a grande maré vazia deixou a descoberto os buracos mais inacessíveis dos polvos daquele laredo. Foi fantástico dominar aqueles bichos cefalópodes apenas com um arpão, enquanto eles nos agarravam os braços com os seus longos tentáculos. Mas a pesca daria uma outra prosa bem vasta….
A chegada do Outono trazia consigo o mais orgânico dos sentimentos em concordância plena com o ciclo dos elementos.
Como última imagem: a barraquinha de madeiras coloridas meia soterrada pela areia, como um navio solitário naufragado no areal da minha infância.

Comentários

  1. Um bom naufrágio! Gosto tanto de te ler Miguel! Obrigada por partilhares! Bjñs berlindes S

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  2. Miguel, lembro-me desse dia.
    Os equinócios e as marés vivas no Vau eram incríveis. Invadiam o território dos toldos sem lhes prestarem importância alguma. Era divertido ficarmos sentados nas cadeiras de madeira a ver o mar a passar por baixo. E brincar no lago que se formava atrás dos toldos, em frente da Casa da Palmeira.
    Uma memória muito forte que guardo desses anos é dos dias em que chovia e nos abrigávamos nas grutas.
    Este ano fiz uma série de desenhos no Vau, Careano e Barranco das Canas. Aqui tens mais memórias: http://luis-anca-desenhos.blogspot.pt/2013/09/praia-do-careano.html
    Um grande abraço.

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    1. :) Era exatamente assim.... Fui lá ver os desenhos e gostei....claro! Um abraço.

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  3. O mar do equinócio dos graúdos, às vezes, também traz coisas belas, mas intangíveis... Certo? Adorei o texto, eram uns verdadeiros "Capitães da Areia"!:)
    Bj,

    J.

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